terça-feira, junho 15, 2010

A educação brasileira tende a se fundar sobre três pilares: Inclusão digital, ambientalismo e prática esportiva superdimensionada. Para quem gosta de siglas, seria a educação de MALUCOS, ou seja, Meio Ambiente Limpo, Universalidade Computacional e Overdose de Sports. Os três 'R's, no inglês, de Reading, Writing and Arithmetics, não fazem mais a cabeça dos educadores.

Certa feita, Ferreira Gullar disse-me que um bom professor forma um aluno até mesmo debaixo de uma árvore. Parecia reverberar a lição de Josué Montello, seu conterrâneo maranhense.

O Barão "tirou do baú um de seus livros que o muito manuseio ensebara, e disse a Damião, debaixo da sombra de uma ingazeira.

-- Vou te ensinar a ler.

E ali mesmo principiou-lhe a mostrar as letras (...), ao cabo de um mês, já o Barão passara a ler com ele a História de Carlos Magno e os doze pares da França." (Montello, Josué. Os tambores de São Luís)

Por que não retomar o ensino de latim? Além do benefício lógico -- um gramático poderia dizer que cada aula de latim é uma aula de lógica --, obrigar-se-ia o aluno a passar largo tempo consultando o dicionário, tal que ao efeito positivo atribuído ao esporte, qual seja, de afastar da rua e seus perigos o menino e adolescente, o estudo de latim igualmente se prestaria.

quarta-feira, junho 02, 2010

Erro de Zubiri

Ele comete o erro primário de confundir psique com alma, erro que Rene Guénon procura desfazer já no título do capítulo XXXV de seu 'O reino da quantidade e o sinal dos tempos'. Zubiri diz: "O aspecto psíquico da substantividade humana tampouco é, como se costuma dizer, "espírito" (termo também muito vago). Poderia chamar-se alma se o vocábulo não estivesse sobrecarregado de um sentido especial, arquidiscutível, a saber: o sentido de uma entidade "dentro" do corpo e "separável" de si. Prefiro portanto chamar a este aspecto simplesmente "psique"." (Zubiri, El hombre y su cuerpo, tradução minha) Nem alma nem espírito, Zubiri, na realidade, a psique se pode chamar também de mente. Alma e espírito são termos impróprios porque correspondem a outro aspecto da substantividade humana, que não o psíquico. Vejamos o trecho do Livro de Urântia que explica resumidamente os níveis da realidade na experiência humana:

"1. Corpo. O organismo material ou físico do homem. O mecanismo eletro-químico vivo de natureza e origem animal.

2. Mente. O mecanismo de pensar, perceber e sentir do organismo humano. A experiência total, consciente e inconsciente. A inteligência associada à vida emocional, buscando, por meio da adoração e da sabedoria, alcançar o nível acima, do espírito.

3. Espírito. O espírito divino que reside na mente do homem -- o Ajustador do Pensamento. Este espírito imortal é pré-pessoal -- não é uma personalidade, se bem que esteja destinado a transformar-se em uma parte da personalidade da criatura mortal, quando da sua sobrevivência.

4. Alma. A alma do homem é uma aquisição experiencial. À medida que uma criatura mortal escolhe "cumprir a vontade do Pai dos céus", assim o espírito que que reside no homem torna-se o pai de uma nova realidade na experiência humana. A mente mortal e material é a mãe dessa mesma realidade emergente. (...) Essa é a alma emergente que está destinada a sobreviver à morte física e iniciar a ascensão ao Paraíso." (Livro de Urântia, Introdução, seção V)

Zubiri acredita que o homem forma uma unidade estrutural psico-orgânica. Exagerando as conseqüências desta teoria, incorre em outro erro ao dizer o seguinte: "(...) Quando o cristianismo, por exemplo, fala de sobrevivência e imortalidade, quem sobrevive e é imortal não é a alma mas o homem, isto é, a substantividade humana inteira." (Zubiri, El hombre y su cuerpo, tradução minha) Destrinchemos suas palavras: Por alma, no caso, ele deseja significar a psique, apenas utilizou o termo mais caro à tradição cristã, ao qual entretanto ele prefere o termo "psique". Este não é o ponto. Zubiri afirma que a substantividade humana inteira sobrevive. Que é, então, essa substantividade humana inteira? "O homem não é psique "e" organismo, porém sua psique é formal e constitutivamente "psique-de" este organismo, e este organismo é formal e constitutivamente "organismo-de" esta psique." (Zubiri, El hombre y su cuerpo, tradução minha) Ele acredita portanto que o corpo, junto com a psique, enquanto sub-sistemas do sistema constitutivo humano, deverão sobreviver. Isto é erradíssimo. Pois:

"No tempo, o corpo do homem é tão real quanto a mente ou o espírito, mas, na morte, tanto a mente (a identidade) quanto o espírito sobrevivem, enquanto o corpo não." (Livro de Urântia, doc. 12, seção 8)

Conceda-se a Zubiri, entretanto, que o homem sobrevivente em sua ascensão até o Paraíso ganhará novas formas -- termo empregado aqui conforme o uso corriqueiro --, ou vestimentas, com que se apresenta -- em termos zubirianos, o equivalente ao "momento de corporeidade" da substância psico-orgânica -- mas que não são, obviamente, um organismo físico-químico*, nem se concebe que Zubiri as tenha imaginado assim, o que seria um erro bisonho. "Tais formas, embora totalmente reais, não são os padrões de energia da ordem material, como vós entenderíeis agora. Contudo, ela vos servem, nos mundos do universo local, aos mesmos propósitos que os vossos corpos materiais vos serviram nos planetas do vosso nascimento humano." (Livro de Urântia, doc. 112, seção 6)

Do pouco ainda que conhecemos de sua obra, podemos já dizer que Zubiri é um filósofo de excelentes "insights". Sua teoria de que a substantividade humana consiste numa unidade estrutural em que "seus elementos não se determinam como ato e potência mas co-determinam-se mutuamente" (Zubiri, 'El hombre, realidad personal', tradução minha), de sorte que a psique seria estruturamente orgânica, porque vertida a um corpo, e o organismo, por sua vez, estruturalmente psíquico, pelo mesmo motivo, é realmente importante. Entretanto, Zubiri parece ter deixado de lado os outros e, por assim dizer, mais "estruturais" níveis de realidade humana, como o espírito, o qual é dotado ao ser humano tão logo ele tome sua primeira decisão moral, geralmente quando criança. A personalidade, crème de la crème, é a qualidade estruturadora, ela unifica os níveis da realidade e coordena suas relações.


*Em termos zubirianos, novamente, é impreciso igualar o organismo físico-químico ao corpo. Dir-se-ia, mais corretamente, que o corpo é o organismo na sua função somática, ou seja, enquanto "fundamento material da corporeidade do sistema." (Zubiri, El hombre y su cuerpo, tradução minha)

terça-feira, junho 01, 2010

Cecília Meirelles, em Metal Rosicler, 35

Embora chames burguesa,
ó poeta moderno, a rosa,
não lhes tira a beleza.

A tua sanha imprevista
contra a vítima formosa,
é um mero ponto de vista.

Pode a sanha ser moderna,
pode ser louvada, a glosa:
mas sendo a Beleza eterna,

que vos julgue o tempo sábio:
entre os espinhos, a rosa,
entre as palavras, teu lábio.

sábado, maio 29, 2010

A moral da espada e a despedida de McArthur

"(...) A paz jamais deverá ser ou conseguirá ser permanente no planeta, a não ser que os estados pacificamente organizados preservem alguns dos antigos elementos da disciplina militar. Uma economia de paz seguramente exitosa não pode ser uma simples economia do prazer. No futuro em maior ou menor grau socialista em direção ao qual a humanidade parece se dirigir, ainda precisamos nos submeter coletivamente àquelas severidades que respondem à nossa real posição neste planeta apenas parcialmente hospitaleiro. Precisamos fazer com que novas energias e dificuldades continuem a virilidade à qual a mente militar tão fielmente se presta. As virtudes marciais devem ser o cimento duradouro; intrepidez, desprezo pela moleza, abandono dos interesses particulares, obediência ao comando, devem permanecer como a pedra sobre a qual os estados são construídos. (...)" (James, William. The Moral Equivalent of War, tradução minha)

Selecionei e traduzi as passagens de um discurso do general norte-americano McArthur se despedindo do serviço militar. Ele foi o general que comandou o Japão no pós-guerra, realizando um trabalho que deixou saudade. Escolhi a epígrafe acima para dizer que as virtudes marcias devem sempre ser contempladas, porque são virtudes. Um planeta sem guerras não existirá pelo incentivo ao tipo de homem que Arnold Schwarzenegger chamou de "girly-man". Antes, as virtudes marciais podem ser trabalhadas em outros projetos que não exatamente os militares. O serviço desinteressado e a honra são satisfeitos numa escola de escoteiros ou numa missão para ensinar saneamento básico nos confins da Amazônia, por exemplo.

Cada parágrago em português será seguido do original em inglês.

"Dever, Honra, Pátria: estas três palavras sagradas ditam de modo reverente o que você deve ser, o que você pode ser, o que você será. Elas são o vosso ponto para reunião de forças: construir a coragem quando ela parece falhar; renovar a fé quando parece haver pouco motivo para isto; criar esperança quando a esperança fica abandonada. Infelizmente, eu não possuo nem essa eloqüência de dicção, nem a poesia da imaginação, ou o brilho da metáfora para dizer-lhes o que significam.

Duty, Honor, Country: Those three hallowed words reverently dictate what you ought to be, what you can be, what you will be. They are your rallying points: to build courage when courage seems to fail; to regain faith when there seems to be little cause for faith; to create hope when hope becomes forlorn. Unhappily, I possess neither that eloquence of diction, that poetry of imagination, nor that brilliance of metaphor to tell you all that they mean.

Os céticos dirão que se trata apenas de palavras, de um slogan, de uma frase vistosa. Todo pedante, todo demagogo, todo cínico, todo hipócrita, todo criador de problemas, e, desculpem-me dizê-lo, alguns outros de um caráter totalmente distinto, tentarão rebaixá-las até o nível da zombaria e do ridículo.

The unbelievers will say they are but words, but a slogan, but a flamboyant phrase. Every pedant, every demagogue, every cynic, every hypocrite, every troublemaker, and, I am sorry to say, some others of an entirely different character, will try to downgrade them even to the extent of mockery and ridicule.

Mas estas são algumas das coisas que as palavras fazem. Elas formam seu caráter básico. Elas vos moldam para suas funções futuras como guardiões da defesa da nação. Elas o tornam forte o bastante para saber quando se está fraco, e valente o bastante para ver o próprio rosto quando você está com medo.

But these are some of the things they do. They build your basic character. They mold you for your future roles as the custodians of the nation's defense. They make you strong enough to know when you are weak, and brave enough to face yourself when you are afraid.

Elas o ensinam a ficar orgulhoso, tranqüilo e firme no fracasso honesto, porém humilde e gentil no êxito; a não substituir palavras por ação; a não buscar o rumo do conforto, mas enfrentar o desgaste e instigar-se com a dificuldade e o desafio; a se levantar na tormenta, mas a ter compaixão pelos que caem; a se dominar antes de querer dominar os outros; a ter um coração limpo e um objetivo alto; a aprender a rir, sem todavia esquecer como chorar; a alcançar o futuro, sem negligenciar o passado; a ser sério, sem entretanto se levar tão a sério; a ser modesto para lembrar a simplicidade da verdadeira grandeza, a mente aberta da verdadeira sabedoria, a brandura da força verdadeira.

They teach you to be proud and unbending in honest failure, but humble and gentle in success; not to substitute words for action; not to seek the path of comfort, but to face the stress and spur of difficulty and challenge; to learn to stand up in the storm, but to have compassion on those who fall; to master yourself before you seek to master others; to have a heart that is clean, a goal that is high; to learn to laugh, yet never forget how to weep; to reach into the future, yet never neglect the past; to be serious, yet never take yourself too seriously; to be modest so that you will remember the simplicity of true greatness; the open mind of true wisdom, the meekness of true strength.

Elas te dão uma vontade temperada, uma qualidade de imaginação, um vigor de emoções, um frescor das primaveras profundas da vida, uma predominância temperamental da coragem sobre a timidez, um apetite pela aventura ao invés do amor à preguiça. Elas criam em seu coração o senso para se maravilhar, a esperança infalível sobre o que vem em seguida, e a alegria e inspiração da vida. Elas te ensinam dessa maneira a ser um oficial e um cavalheiro.

They give you a temperate will, a quality of imagination, a vigor of the emotions, a freshness of the deep springs of life, a temperamental predominance of courage over timidity, an appetite for adventure over love of ease. They create in your heart the sense of wonder, the unfailing hope of what next, and the joy and inspiration of life. They teach you in this way to be an officer and a gentleman."

domingo, maio 23, 2010

Moral revelada e filosofada

"A virtude é retidão -- conformidade com o cosmo. Dar nome às virtudes não é definí-las; vivê-las, no entanto, é conhecê-las. A virtude não é mero conhecimento, nem mesmo sabedoria, mas antes, é realidade, de experiência progressiva, durante o alcançar dos níveis ascendentes da realização cósmica. No dia-a-dia da vida do homem mortal, a virtude é ealizada pela preferência consistente do bem ao mal, e tal capacidade de escolha é a evidência da posse de uma natureza moral.
A escolha feita pelo homem, entre o bem e o mal, é influenciada não apenas pela acuidade de sua natureza moral, mas também por forças, tais como a ignorância, imaturidade e ilusão. Um certo senso de proporção também está envolvido no exercício da virtude, porque o mal pode ser perpetrado quando o menor é preferido ao maior, em conseqüência de distorção ou engano. A arte de estimar relativamente, ou de medida comparativa, entra na prática das virtudes do âmbito moral.

A natureza moral do homem seria impotente sem a arte da medida, da discriminação incorporada à capacidade de escrutinar os significados. Do mesmo modo, a escolha moral seria mera futilidade, sem aquela clarividência cósmica que produz a consciência dos valores espirituais. Do ponto de vista da inteligência, o homem ascende ao nível de ente moral por ser dotado de personalidade.

A moralidade nunca pode ser promovida pela lei nem pela força. É uma questão da personalidade e do livre-arbítrio, e deve ser disseminada pelo contágio, a partir do contato das pessoas moralmente atraentes com aquelas que são menos responsáveis moralmente, mas que, em alguma medida, também estão desejosas de cumprir a vonta de Pai." (Livro de Urântia, documento 16, seção 7, p. 193)

"Não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil." (Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro II, 2)

"A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo." (Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro II, 6)

"(...) Isso não é fácil de determinar pelo raciocínio, como tudo que seja percebido pelos sentidos; tais coisas dependem de circunstâncias particulares, e quem decide é a percepção.
Fica bem claro, pois, que em todas as coisas o meio-termo é digno de ser louvado, mas que às vezes devemos inclinar-nos para o excesso e outras vezes para a deficiência. Efetivamente, essa é a maneira mais fácil de atingir o meio-termo e o que é certo." (Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro II, 9)

sábado, maio 22, 2010

O direito da criança adotável a ter o melhor pai

Qualquer discussão sobre a adoção de crianças deve começar pelo princípio, "first things first", e o princípio está no título acima.

Não há um direito de homossexuais a adotarem crianças. Dadas as circunstâncias, não obstante, o melhor para a criança poderá ser a adoção por homossexuais, porque na falta de um casal heterossexual, o que é a melhor solução para si, a adoção homossexual pode ser sua opção. Neste caso, ter um pai homossexual pode ser melhor do que não ter pai algum.

Um juiz deverá ouvir as dificuldades que a criação por homossexuais pode acarretar, e, considerando as opções que a criança tem, decidir sobre sua adoção conforme lhe seja melhor.

quarta-feira, maio 12, 2010

"A prece é a escada misteriosa de Jacó: por ela sobem os pensamentos ao céu; por ela descem as divinas consolações."

Machado de Assis, em Helena, cap. XIII.

quinta-feira, abril 15, 2010

Quatro fases do romance brasileiro: a idealista crua de José de Alencar; a desedificante de Machado de Assis, em parte continuada por Graciliano Ramos; o mal-estar de Lima Barreto, que reclama tanto da desedificação quanto do idealismo cru; e a modernista, que procura construir um país, de Adonias Filho e Guimarães Rosa, muito embora a crítica de Gerado Mello Mourão de que Rosa quis contruir uma nova língua ao invés de uma nova linguagem seja motivo para reflexão -- seria a prosa de Rosa uma forma de fuga da realidade, ainda que para criar uma realidade melhor? Em 'A hora e a vez de Augusto Matraga' certamente não, mas em 'Grande Sertão Veredas' pode ser.

segunda-feira, abril 05, 2010

Demonstra-se o infinito assim

"(...) mas é todo pleno do que é.
Por isso, é todo contínuo: pois ente a ente cerca."
(Parmênides)

Além e subsistente ao conjunto de finitos, há o infinito, porque se não houvesse, haveria buracos entre ou para além dos finitos.

Esses buracos ou não são de modo relativo ou não são de modo absoluto.

Se de modo relativo, então eles são de algum modo, portanto são algo finito, não são o nada absoluto.

Se não são de modo absoluto, absolutamente nada são, porém o que nada é exclui absolutamente qualquer ser.

Então ou nada há ou algo há.

Que há algo é um dado inegável.

De sorte que se há algo, o infinito precisa completar o finito. Porque ou entre os finitos, para que não haja buracos, há o infinito; ou porque, se os finitos estão colados uns no outro, para que não haja um buraco após o último dos finitos -- o finito da margem ou ponta -- eles deveriam ser em número infinito, de sorte que o infinito é a continuação da sucessão dos finitos.

O infinito compreende, ultrapassa e subjaz a tudo que é finito.

sábado, abril 03, 2010

No primeiro volume de sua obra em seis volumes, 'História da Igreja de Cristo', Daniel-Rops diz que, logo após o Pentecostes, quando Pedro "gritou a sua fé inquebrantável no Jesus Messias, começara (...) a história cristã, com esta primeira declaração apologética, que era também uma declaração de guerra ao mundo."

Porém Jesus pede ao Pai do céu: "Não peço que os tireis do mundo, mas que os livreis do mal." (Jo, 17:15)

Não me parece um bom começo para uma obra sobre a história do cristianismo. Mas pode ser também apenas o tropeço de quem está começando a andar.

quarta-feira, março 31, 2010

Manga

por Maria Lúcia dal Farra

Ela está sobre a mesa --
nua
e fechada em si
como uma urna.
O elegante perfil convoca outras formas
para torná-la única:
pêra, pêssego, abricô -- o coração, afinal,
de onde irrigam a candura
e o aceno para afagá-la com duas mãos.

De modo que a boca quase treme
(hesitante entre beijá-la e mordê-la)
quando dela se achega
sem saber se se entrega ao domínio do cheiro
ou à volúpia de lambê-la --
mesmo antes de (com unhas)
fender-lhe a pele vermelho-verde.

Ah, sulcar a carne macia com o arado dos dentes
deixando que neles se enrosquem os cabelos
que a fruta
(aflita)
não pode conter diante do torvelinho dos sentidos --
do cataclismo que o desejo encena
no afã de conhecer-lhe o rosto!

Sôfrego, salivo abocanhando a polpa
(esse manancial de sucos que me lambuza,
espirra, goteja e baba)
que chupo exaurindo a fonte dos deleites
dessa mulher que
por fim consentiu
(pudica e fogosa)
de a mim se entregar.

......

Da obra Livro de Possuídos.

domingo, março 28, 2010

A carga da Brigada Ligeira

No filme 'The blind side', lançado com o título 'Um sonho possível' em português, pelo qual Sandra Bullock recebeu o Oscar de melhor atriz, há uma cena em que a personagem principal recebe uma lição de poesia de seu pai adotivo. O tema é uma investida mal calculada e malfadada, porém brava, da cavalaria britânica contra as forças russas durante a Guerra da Criméia.


Segue o poema declamado. A tradução para o português, feita por Octávio Santos, está logo a seguir.


The Charge of the Light Brigade


By Alfred Tennyson


HALF a league, half a league,
Half a league onward,
All in the valley of Death
Rode the six hundred.
‘Forward, the Light Brigade!
Charge for the guns!’ he said;
Into the valley of Death
Rode the six hundred.


‘Forward, the Light Brigade!’
Was there a man dismay’d?
Not tho’ the soldier knew
Some one had blunder’d:
Their’s not to make reply,
Their’s not to reason why,
Their’s but to do and die:
Into the valley of Death
Rode the six hundred.


Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon in front of them
Volley’d and thunder’d;
Storm’d at with shot and shell,
Boldly they rode and well,
Into the jaws of Death,
Into the mouth of Hell
Rode the six hundred.


Flash’d all their sabres bare,
Flash’d as they turn’d in air,
Sabring the gunners there,
Charging an army, while
All the world wonder‘d:
Plunged in the battery-smoke
Right thro’ the line they broke;
Cossack and Russian
Reel’d from the sabre-stroke
Shatter’d and sunder’d.
Then they rode back, but not,
Not the six hundred.


Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon behind them
Volley’d and thunder’d;
Storm’d at with shot and shell,
While horse and hero fell,
They that had fought so well
Came thro’ the jaws of Hell,
All that was left of them,
Left of six hundred.


When can their glory fade?
O the wild charge they made!
All the world wonder’d.
Honour the charge they made!
Honour the Light Brigade,
Noble six hundred!


A Carga da Brigada Ligeira


por Alfred Tennyson


Meia légua, meia légua,

meia légua em frente,

todos no Vale da Morte

cavalgaram com os seis centos.

“Para a frente a Brigada Ligeira!

Carreguem contra as armas!”, disse ele.

Para o Vale da Morte

cavalgaram os seis centos.


Para a frente a Brigada Ligeira!

Havia algum homem desanimado?

Todavia, o soldado não sabia

De algum que tivesse disparatado.

Eles não têm de responder,

eles não têm de se perguntar,

eles só têm de fazer e de morrer.

Para o Vale da Morte

cavalgaram os seis centos.


Canhão à direita deles,

canhão à esquerda deles,

canhão à frente deles

saraivaram e trovejaram;

atingidos por balas e obuses,

com audácia eles cavalgaram e bem,

para as mandíbulas da Morte,

para a boca do inferno

cavalgaram os seis centos.


Reluziram todos os seus sabres despidos,

reluziram ao rodopiarem no ar

sabrando os artilheiros lá

carregando contra um exército, enquanto

todo o Mundo se maravilhava.

Mergulhados no fumo das baterias

através da linha deles romperam a direito;

cossacos e russos

cambaleantes das sabradas

estilhaçaram-se e fenderam-se.

Então eles cavalgaram para trás, mas não,

não os seis centos.


Canhão à direita deles,

canhão à esquerda deles,

canhão à frente deles

saraivaram e trovejaram;

atingidos por balas e obuses,

enquanto cavalos e heróis caíam,

eles que haviam lutado tão bem

vieram através da mandíbulas da Morte,

de volta da boca do inferno,

tudo o que restava deles,

o que restava dos seis centos.


Quando irá a sua glória desvanecer-se?

Oh, a carga bravia que eles fizeram!

Todo o Mundo se maravilhou.

Honrem a carga que eles fizeram!

Honrem a Brigada Ligeira,

Nobres seis centos.


......


Créditos: www.arlindo-correia.com/220310.html

sábado, março 27, 2010

Como os militares começaram a atuar na vida política brasileira

"Um dos princípios da "política positiva" de Augusto Comte era a evolução da ciência da guerra para fins de paz, com a transferência dos deveres da segurança externa para a ordem interna. Por isso, Comte dizia que o "exército se mudará finalmente em gendarmeria, quando todo receio de invasão estiver definitivamente dissipado".

Daí as preocupações que levaram o exército republicano a defender a solidariedade continental (tratado com a Argentina), transferindo sua atenção para uma espécie de tutela interna, que não demorou a se tornar opressiva.

Os militares passaram a a ver no exército não uma força de defesa externa, mas um instrumento de reforma interna do país. A disciplina viu-se, assim, subvertida pela reivindicação do direito de livre exame, atitude protestante que, depois de instalada a república, levou Floriano àquela espécie de calvinismo caboclo, brutal tirania em guarda da pureza republicana. (...)" (Arinos, Afonso e Jânio Quadros, História do povo brasileiro, V Volume, A República, as oligarquias estaduais, São Paulo: J. Quadros editores culturais S. A., 1968, p. 42)

quarta-feira, março 24, 2010

Democracia é a concordância de que pode haver discordâncias.

segunda-feira, março 22, 2010

Comparada com a política de Obama para o Oriente Médio, nem parece que a de Lula é pró-palestina. Porém, se o mulato conseguir o estabelecimento dos dois Estados, um judeu e um palestino, ele pode vir a ser o Reagan da direita. Pelo que se viu do empenho para a aprovação do "health care bill", o homem é determinado.

domingo, março 21, 2010

Passando a limpo a guerra do Paraguai

"É fantasiosa a imagem construída por certo revisionismo histórico de que o Paraguai pré-1865 promoveu sua industrialização a partir de "dentro", com seus próprios recursos, sem depender dos centros capitalistas, a ponto de supostamente tornar-se ameaça aos interesses da Inglaterra no Prata. Os projetos de infra-estrutura guarani foram atendidos por bens de capital ingleses e a maioria dos especialistas estrangeiros que os implementaram era britânica. (...)

Também é equivocada a apesentação do Paraguai como um Estado onde haveria igualdade social e educação avançada. A realidade era outra e havia uma promíscua relação entre os interessados do Estado e os da família Lopez, a qual soube se tornar a maior proprietária "privada" do país enquanto esteve no poder." (Doratioto, Francisco. Maldita guerra: Nova história da guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 30)

"Carlos Antonio López morreu em 10 de setembro de 1862. Momentos antes de expirar, alertou Solano López de que o Paraguai "tem muitas questões pendentes, mas não busque resolvê-las pela espada, mas sim pela caneta, principalmente com o Brasil." Carlos López agiu para obter um lugar para o Paraguai no plano internacional, mas tinha consciência da debilidade de seu país, daí o pragmatismo de sua política externa, pautada pelos limites do possível. O falecido presidente não era um aventureiro, nem um teimoso, e "como bom administrador tradicional, conhecia os limites do seu poder." Bem diferente seria a atuação de seu filho mais velho, ao ocupar a presidência paraguaia." (Idem, p. 41)

domingo, março 14, 2010

Quando Dom Pedro I cassa a Constituinte de 1823, os deputados saem do salão saudando-o.

Bonifácio e seus irmãos
deixam a Constituinte
e nem olham para o Príncipe,
cumprimentam o canhão.

terça-feira, março 09, 2010

Formalismo

-- O senhor foi eliminado do certame.

-- Mas como, por quê?

--O senhor não utilizou a caneta adequada.

--Como não, utilizei a caneta esferográfica na cor preta, como dizia o edital.

-- O edital diz que o senhor deve utilizar a caneta esferográfica de tinta preta transparente.

-- Ah -- exclamou enfastiado. -- OK, mas quem sabe disso?

-- O sistema, o sistema sabe tudo.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Senhor Raúl Castro, derrube essa tirania.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

J'aime le rire,

Non le rire ironique aux sarcasmes moqueurs,
Mais le doux rire honnête ouvrant bouches et coeurs"
(Victor Hugo, Les Contemplations, Aurore, VI, La Vie Aux Champs)

"E resta saber por fim se o estilo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadência de uma frase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma ideia..."
(Eça de Queiroz, Os Maias, IX)

"Apenas um poeta pode ver poesia na prosa lugar-comum da existência rotineira." (Livro de Urântia, doc. 48, 7)

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Tomás e João no café do curso sobre filosofia medieval

-- Duns Scot inventa classificações sobre o vazio, trata-se de um individualista que está na raiz da modernidade ou da dessacralização do homem dentro do cosmos.

-- Calma, não é bem assim. Ele foi beatificado, se você ler seus escritos verá que ele procura seguir fielmente as Escrituras, de maneira inclusive até mais estrita que Tomás de Aquino.

-- Você está errado em defendê-lo, cara, reconheça, não adianta.

-- Só estou dizendo que Santo Tomás não é dono da verdade, embora doutor comum da Igreja. Ele mesmo chegou a minimizar o que escrevera. É bom procurar a verdade onde quer que ela esteja.

-- Você é muito voluntarista. -- Sai.

-- Que seja. -- Fica.

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Protesto contra a qualidade das estradas.

Porque o veículo saculeja muito e o passageiro não pode seguir viagem lendo. Para quem já usa óculos, definitivamente não é bom.

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Comissão Pessoal da Vaidade

Em entrevista à Tribuna do Advogado, publicação mensal que adora dar voz a militantes de direitos humanos, o senhor Marcos Rolim omite cinicamente que os militantes contra a ditadura, longe de meramente resisistirem à sua atuação, queriam substituí-la por uma muito pior, a se dar crédito ao modelo que tinham em mente, a ditadura cubana. Comparada a esta, o regime militar brasileiro foi de fato uma ditabranda, onde morreram por volta de 300 militantes armados e 200 soldados que a defendiam.

O senhor Marcos Rolim foi um dos redatores do famigerado -- dá-lhe Guimarães Rosa! -- PNDH-3, ou Programa Nacional dos Direitos Humanos, terceira geração, que cria, entre aberrações, a Comissão Nacional da Verdade, cujo nome pomposo quase faz chorar a mãe desavisada que perdeu o filho adolescente desaparecido. A Comissão para estudar os fatos e devolver os ossos, como em circunstância distinta pediu a velha imaginada por Adonias Filho, não é ruim em si. O mal é o seu aproveitamento político pelas viúvas da revolução. O senhor Marcos Rolim quer fazer acreditar que os militantes armados eram resistentes heróicos. Balela! Se houve mocinhos durante o regime militar, esses foram os que a ele se opuseram, sem desejar, porém, radicalizá-lo sob seu comando. Gerardo Mello Mourão, o poeta e deputado federal, foi um mocinho. Marcos Rolim não. Ele é apenas um cínico fingindo estar do lado dos bons da história, dos quais por isso mesmo se pode suspeitar serem vilãos.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

For Hans Carossa

by Rainer Maria Rilke

Losing too is still ours; and even forgetting
still has a shape in the kindgdom of transformation.
When something's let go of, it circles; and though we are
rarely the center
of the circle, it draws around us its unbroken, marvelous
curve.

Translated by Stephen Mitchell

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Já na Roma antiga.

O barbudo Calístrato desposou o robusto Afro
segundo a lei que une uma donzela a um homem.
Acenderam-se tochas, cobriu-se o rosto com o véu,
e nem te faltaram os teus cantos, Talassião.
Fixou-se até o dote. Não te parece, Roma,
que já chega? Esperas, se calhar, que ele até dê a luz?

Marcial, Epigramas. Vol. IV, livro XII, 42, p. 123 (trad. de José Luiz Brandão)

Créditos para o saite Super Flumina.

Por uma outra visão

Os americanos são uns egoístas. Eles vão ao Haiti, ajudam o país a se recuperar do terremoto e vão logo embora, não ficam sequer para a reconstrução política, medida que só reservam para casos "mais importantes", como um Japão ou Iraque. Nem mesmo um protetorado à moda de Porto Rico eles desejam para os pobres haitianos. Esses americanos são mesmo uns egoístas, só querem fazer o serviço e se picar.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Conserving what?

Em três programas de rádio, a BBC investiga o que o conservadorismo is all about.

Ouça os programas em inglês aqui.

terça-feira, dezembro 08, 2009

A Tarde do mundo

por Ângelo Monteiro

Teci-me de sombras para a tarde
me estender sobre as mais pobres coisas.
Tarde sem Vésper e véspera,
em que nada se espera
nem mesmo a lua má anunciada.
Tarde, ó tarde, ó tarde sem mais volta
não preparas nem o ocaso do Sonho
nem o acaso da morte.
Entretanto estou em ti, postiça tarde.
Estou para perder o já perdido
estou para encontrar o fogo que não arde
não me perco de ti, postiça tarde.
Tarde perdida em si, sem ânsia de morrer
nem de viver na lua que surgir.
Tarde de um mundo morto, tarde sem lua perto
que ilumine em cada coisa o seu deserto.
Tarde sem alma e homem, tarde jamais ferida
pela centelha do morrer da vida.
tarde de um tempo inteiramente cego: tarde que eu nego.

Do livro As Armadilhas da Luz.

...

Urca e Tango Jalousie, por Sergio Lemos

I

Memória do assoalho, a tarde-pântano,
exalada de tábuas, rodapés.
Laivos da noite, rápido, esquivando-se
embrulhados na luz da tarde-mel.

Pelos vidros de cor, pé-ante-pé,
a poeira luminosa ia avançando.
Oh a tarde de laranjas bocejando,
papel de pão, as moscas, o café.

E a década sinistra de quarenta
vinha doce, tranqüila, sonolenta
como um gato lambendo nossa mão.

Vila Isabel -- o rádio era criança.
A Shirley Temple. Ocupada a França.
E os vidros de merengue com limão.

Do livro A Luz no Caleidoscópio



...

por Daniel H. Lourenço

O universo imóvel na tarde quente,
sinérgicos lemos uma folha farfalhar
na árvore da avenida Portugal.
O vento assobia como se estivesse piscando para a gente,
lá fora da sombra, entretanto,

é um mundo frugal.

Ao entardecer, a brisa do mar traz moedas e conchas
onde disfarço os ouvidos para escutar o tao.

sábado, dezembro 05, 2009

E ainda sobre o materialismo...

"Para o materialista descrente, o homem é simplesmente um acidente evolucionário. As suas esperanças de sobrevivência estão ligadas a uma ficção que é da sua imaginação mortal; os seus medos, amores, aspirações e crenças não são senão a reação de uma justaposição incidental de certos átomos de matéria sem vida. Nenhum aparato de energia, nenhuma expressão de confiança pode transportá-lo depois do túmulo. As obras devocionais e o gênio inspirado dos melhores dos homens estão condenados a ficar extintos pela morte, pela noite longa e solitária do esquecimento eterno e da extinção da alma. O desespero sem nome é a única recompensa por viver e labutar sob o sol temporal da existência mortal. A cada dia a vida, vagarosa mas certamente, aperta mais a sua garra de condenação sem piedade, a qual um universo material hostil e implacável decretou fosse o insulto que coroa a tudo aquilo que é belo, nobre, elevado e bom nos desejos humanos.


Contudo, não é esse o fim, nem o destino eterno do homem; essa visão não é senão o grito de desespero proferido por alguma alma errante que ficou perdida nas trevas espirituais, e que bravamente continua lutando dentro dos sofismas mecanicistas de uma filosofia materialista, cega pela desordem e pelas deformações de uma erudição tornada complexa. E toda essa condenação às trevas e todo esse destino de desespero ficam, para sempre, dissipados por um esforço valente de fé da parte do mais humilde e iletrado entre os filhos de Deus sobre a Terra.


Essa fé salvadora tem o seu nascimento no coração humano, quando a consciência moral do homem compreende que os valores humanos podem ser transladados do material para o espiritual, na experiência mortal, do humano até o divino, do tempo até a eternidade." (Livro de Urântia, documento 102, Os fundamentos da fé religiosa)

Materialismo e o ato de conhecimento

Em 'Sabedoria dos Princípios', Mário Ferreira dos Santos escreve sobre o materialismo, compreensão filosófica estranha à sua:

"Lenine escreveu algumas obras de filosofia, e que tiveram repercussão entre os partidários das suas doutrinas, e, também, certa influência sobre elementos de outros setores. Instado constantemente, para que definisse claramente em que consistia o "seu materialismo", já que o exposto por Engels confundia-se com o materialismo vulgar, em seu "Materialismo e e Empririocriticismo", Lenine, com bastante brilho, definiu muito claramente a sua posição do ângulo gnoseológico, que pode esclarecer-se como definitiva: "Materialismo é aquela posição que admite sempre a anterioridade do objeto sobre o sujeito" (grifo meu).

É uma posição, em suma, do ângulo gnoseológico, que nos coloca em face do mundo como apenas uma tábula rasa, que capta os fantasmas*, e sobre ele construirá as suas generalidades.

(...)

(...) convém estabelecer uma distinção muito acertada e necessária quanto à independência do conhecimento, das impressões sensoriais, a saber: a distinção entre uma independência causal de origem, independência lógica de constituição. Assim as idéias inatas de Platão possuíam uma completa independência lógica, porque a estrutura lógica das idéias eternas não pode ser tirada da percepção das coisas contingentes, que só têm função de lembrar a respectiva idéia preexistente na mente. Mas a necessidade de tal lembrança, a anamnésis, constitui a dependência causal quanto à atualização da consciência ou, em termos platônicos, da memória.

(...)

(...) Sempre foi considerado óbvio que a totalidade dos conhecimentos que o indivíduo possui, mesmo que inteiramente devido à experiência, de certo modo não é devido só à experiência desse indivíduo.

(...)

A verdadeira posição que se pode tomar aqui é, dentre as três possíveis: 1) a anterioridade total do objeto sobre o sujeito; 2) a anterioridade total do sujeito sobre o objeto e, 3) a anterioridade parcial do sujeito e do objeto, que seria a posição partim-partim (parte-parte), (...) à qual nos filiamos e defendemos.""

*Nota minha: Os fantasmas são os objetos materiais que estimulam os nossos sentidos exteriores.

......

O sujeito receberia, por assim dizer, duas informações: uma, aquela que é emitida pelo próprio objeto, e outra, que lhe é transmitida pelas regras eternas, as quais são os "modos pelos quais nossa mente conhece e julga que tal ou qual coisa não pode ser de maneira outra da que é." Na linguagem de Boaventura de Bagnoregio, pela cointuição com a luz sapiencial, além de ser apenas regidos pelos princípios eternos, podemos inclusive vir a captá-los. Nesta possibilidade, os princípios eternos são a uma só vez objeto e regradores do ato de conhecer. "A sapiência é esta capacidade de captar os primeiros princípios."

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Se Lula tentou ou não estuprar João Batista dos Santos

Parece que Lula não tentou estuprar João Batista dos Santos.

1. Pois Paulo de Tarso Santos não confirmou que Lula dissera que estuprou uma pessoa quando esteve na cadeia.
2. Ademais, o próprio Lula disse que se trata de uma "loucura".
3. E além disso, centrais sindicais fizeram um manifesto contra o jornal que deu a notícia do fato.

Mas, em contrário, João Batista dos Santos informou que tudo não passa de um mar de lama e que, devido à sua religião, não pode mentir.

Solução. João Batista dos Santos respondeu que não iria mentir. De maneira que, acreditando-se em seu testemunho de fé, e seguindo o raciocínio feito por Azevedo, das duas uma: ou Lula de fato tentou estuprar João, que pode, sem prejuízo de sua crença religiosa, afirmar que tentaram violá-lo, ou Lula não o estuprou, e João pode afirmar com a consicência limpa que o fato jamais aconteceu, tudo não passando de distúrbios da mente de um psicopata. Ora, a segunda opção seria mais reconfortante para João. Ele esclareceria que jamais tentaram estuprá-lo, e diminuiria o constrangimento que foi obrigado a passar por causa de uma história inventada. De tal sorte que, tendo-se negado a comentar o assunto, fazendo porém a ressalva de que não pode mentir, João sinalizou que de fato a história era verdadeira, mas que não iria comentá-la porque, aqui completamos seu entendimento, ter sofrido uma tentativa de estupro é uma situação deveras desconfortável, sobre a qual talvez não se deseje que estranhos tomem conhecimento, mormente quando este fato pode ter repercussões que envolvem inclusive o impedimento de um Presidente de uma República. Portanto, a atitude de João Batista dos Santos indica que Lula provavelmente tentou estuprá-lo.

Donde a resposta à primeira objeção. Paulo de Tarso Santos não confirmou menção à tentativa de estupro, mas o cineasta Silvio Tendler, também presente à reunião, afirma que Lula o disse, ressalvando porém que não passou de uma troça. Os colegas de cela de Lula, além de João, confirmam que havia um rapaz pertencente ao movimento de emancipação do proletariado (MEP) na cela, João.

Resposta à segunda. É um princípio do direito penal, que um acusado não é obrigado a dizer a verdade sobre a acusação que lhe é feita. Pois é desumano esperar que um acusado vá se incriminar. Sendo assim, a alegação de Lula de que o fato não ocorreu não é indicativo de que o fato realmente não ocorreu.

Resposta à terceira. Protestar contra a veiculação de um fato não significa negar que o fato ocorreu. Se o jornal deve ou não publicar entrevista em que se afirmou que um cidadão, no caso também o Presidente da República, tentou estuprar uma pessoa, é assunto estranho ao presente artigo.

terça-feira, dezembro 01, 2009

Churchill errou

O primeiro-ministro britânico disse a Charles de Gaulle: "Se um dia formos obrigados a escolher entre a Europa e o mar aberto, será o mar aberto que escolheremos." Hoje, entretanto, entrou em vigor o Tratado de Lisboa, pelo qual a União Européia se torna em definitivo um Estado, e o Reino Unido faz parte dela como Estado-Membro.

O paradoxo da atração de pessoas boas pelo marxismo.

Maurico Rojas, aqui, escreve sobre um tema fundamental. Transcrevo a seguir um trecho:

"La visión de Che Guevara como encarnación del mal absoluto coincide con la apreciación de muchos críticos del marxismo, que sugieren que la fuerza de atracción de esta doctrina reside en su capacidad de concitar una serie de sentimientos o rasgos negativos: envidia, destructividad, resentimiento, deseo de dominar a otros o de venganza, sadismo, etc. Por ello, serían personalidades caracterizadas por esos rasgos las que se sentirían atraídas por el marxismo, formando su núcleo activo. El marxismo sería así una ideología que concita los instintos más bajos o, simplemente, la maldad humana, para darle rienda suelta bajo la forma de un movimiento donde estas personalidades atávicas se refuerzan mutuamente.

No niego que haya una buena parte de todo esto en la fuerza de atracción tanto del marxismo como de otros movimientos políticos extremos, y que una parte de los elementos que se congregan en torno a esa ideología adolezcan de rasgos atávicos de personalidad. Aun así pienso que se trata de una forma de aproximarse a este tipo de fenómenos que es fundamentalmente errada, ya que si bien capta una parte de los mismos deja de ver lo que para mí es la verdadera fuerza motora que les da a las ideologías mesiánicas su tremenda capacidad de atraer a aquellos sin los cuáles estos movimientos no llegarían muy lejos, a saber, a los altruistas e idealistas o, para decirlo cortamente, a los buenos (grifo meu), a aquellos que se van a entregar a la causa de la revolución con la devoción de un santo, poniendo de una manera ejemplar todas sus fuerzas e inteligencia al servicio de "la causa", una causa que para ellos representa la bondad absoluta personificada. En fin, se trata de seres que están muy lejos de ser basuras humanas y que se hacen marxistas para hacer el bien pero que terminan -si tienen la oportunidad- haciendo un mal espantoso. Esta es para mí la paradoja que hay que explicar y hacerlo es más difícil que trabajar con la hipótesis simplona de la maldad tanto de las ideas marxistas como de quienes las propagan."

sexta-feira, novembro 27, 2009

Lula tentou estuprar um adolescente

O nosso presidente não é diferente do presidente sul-africano.

César Benjamin revela história contada pelo próprio Lula se gabando de ter tentado fazer sexo com um adolescente, quando esteve preso. Benjamin também foi preso durante o regime militar, e fundou o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 concorreu à vice-presidência da República pelo PSOL.

Do saite de Reinaldo Azevedo:

"A Folha publica hoje alguns textos sobre o filme hagiográfico "Lula, O Filho do Brasil." Benjamin escreve um longo depoimento -- íntegra aqui -- em que narra todos os horrores que sofreu na cadeia, preso que foi aos 17 anos. Entre outras coisas, e sabemos que isto é tragicamente comum nas cadeias brasileiras até hoje, foi entregue para "ser usado" pelos presos comuns, o que, escreve ele, não aconteceu. E faz um texto que chega a ser comovido sobre o respeito que lhe dispensaram na cadeia.

Depois de narrar suas agruras, interrompe o fluxo de memória daquele passado mais distante para se fixar num mais recente, 1994, quando integrava a equipe que cuidava da campanha eleitoral de Lula na TV -- no grupo, estava um marqueteiro americano importado por alguns petistas. E, agora, segue o texto estarrecedor de Benjamin sobre uma reunião:

"(...)

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula, e o publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você estave preso, não é, Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta."

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.""

...

Como diz Reinaldo Azevedo, existem pessoas civilizadas, em qualquer espectro da política, a quem se pode e deve respeitar, a despeito das diferenças. Há outras, no entanto, (im)pessoas que não o são.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Muito barulho por (quase) nada

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por cinco votos a quatro, entenderam que o crime praticado por Cesare Battisti é comum, não um crime político. Entretanto, na hora de decidir sobre a entrega do criminoso às autoridades italianas, um deles voltou atrás, dizendo que a última palavra deve ser sempre do Presidente. A intervenção do ministro Ayres Britto foi brochante, toda uma discussão político-jurídica se desenvolvera em torno do caso para ao fim o STF se pronunciar no sentido de que a decisão cabe ao Presidente da República. Parece que a teoria sobre a revisão judicial dos atos administrativos foi por água abaixo.

Data vênia, o Presidente da República não pode motivar uma possível recusa de extraditar o criminoso sob o argumento de que houve prática de crime político, porque esta matéria já formou coisa julgada, de maneira que o Presidente tem o dever de entregar o criminoso nos termos do tratado bilateral entre Brasil e Itália. Se desejar não entregá-lo, deve antes denunciar o tratado de extradição. Provavelmente não o fará, de sorte que a recusa em entregar o criminoso equivalerá na prática a uma denúncia do tratado.

Como disse o Presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, “O Supremo se ocupa com um tema como esse e depois surge uma decisão: não, nós estávamos brincando”. Exato, suas Excelências perderam, no dizer da ministra Ellen Gracie, seu precioso tempo. E a tripartição dos poderes dá um passo atrás, porque o STF não quis assumir sua função de juiz da causa jurídico-constitucional da extradição, que lhe compete conforme o art. 102, I, alínea g, da CRFB. Ao Presidente, como chefe de Estado, caberia unicamente cumprir a decisão da República Federativa do Brasil, que no caso seria representada pela decisão de sua Corte Suprema. Mas isto não se verificou.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Vinte anos da queda do muro de Berlim

Discurso de Kennedy em Berlim Ocidental, que terminou assim: "Todos os homens livres, onde quer que morem, são cidadãos de Berlim. E por isso, como um homem livre, eu me orgulho dessas palavras: "Ich bin ein Berliner" ("Eu sou um berlinense")." Alguns alemães jocosos podem chamar sua pronúncia alemã de chucrutiana, mas o discurso guarda lugar de destaque entre os históricos.



E Ronald Reagan, passadas duas décadas, no mesmo portal de Brandemburgo, em Berlim Ocidental, pedindo para Gorbatchev abrir o portão e derrubar o muro.



Atualização do dia 13 de novembro de 2009: Kennedy foi o presidente estadunidense que lançou o programa para levar o homem à lua, mas no jogo de medição de forças com a URSS, também foi pusilânime. O historiador Donald Kagan conta que ele poderia ter sido mais firme ao não permitir a instalação do muro de Berlim -- porque a ação soviética contrariava o acordo de Potsdam, entre os aliados vencedores da Segunda Guerra Mundial -- e ao apoiar a invasão à Baía dos Porcos, em Cuba, aliviando desde logo o peso do martelo comunista no continente. Não o tendo feito, deu razão à frase de Donald Rumsfeld: "Fraqueza gera agressividade." Os soviéticos faziam mais e mais exigências, até ao ponto em que mísseis nucleares soviéticos foram instalados em Cuba, o que deu origem à chamada crise dos mísseis -- os quais depois foram desinstalados, porque essa ameaça Kennedy não engoliu.

A despeito de tudo isso, o discurso de Kennedy é uma inspiração para os homens livres, cidadãos de Berlim.

terça-feira, novembro 03, 2009

Global Warning

Cuidado com o aquecimento global. Ele pode queimar seus neurônios.

sábado, outubro 31, 2009

Lições em família

Em sua autobiografia, Theodore Roosevelt, 26° presidente dos Estados Unidos da América, conta sobre a convivência com o tio Jimmy Bulloch, veterano da guerra civil lutando pelos estados confederados, então radicado em Liverpool, na Inglaterra, que visitava a família em Nova Iorque usando nome de fantasia porque não fora anistiado. Diz Roosevelt:

"Meu tio Jimmy Bulloch era clemente e justo com referência às forças da União, e era capaz de discutir todas as fases da Guerra Civil com total justiça e generosidade. Mas na política inglesa, ele logo se tornou um Tory da escola mais ultra-conservadora. Ele conseguia admirar Lincoln e Grant, mas não ouviria nada em favor do senhor Gladstone. As únicas ocasiões em que estremeci sua confiança em mim foram quando eu me aventurei mansamente a sugerir que algumas das mentiras manifestamente disparatas sobre o sr. Gladstone não poderiam ser verdade. Meu tio foi uma das melhores pessoas que jamais conheci, e quando por algumas vezes me senti tentado a imaginar por que bons homens podem crer de mim as coisas impossíveis e injustas que de fato crêem, consolei-me pensando na convicção perfeitamente sincera de Jimmy Bulloch, de que Gladstone foi um homem de infâmia excepcional e inominável tanto na vida pública quanto na privada." (Roosevelt, Theodore. An Autobiography, chapter Boyhood and Youth, 1913)


Tradução minha

quinta-feira, outubro 29, 2009

Momento tenso

O primeiro embaixador dos Estados Unidos da América no Reino Unido tem sua primeira audiência com o rei.

A série John Adams é uma cinebiografia do segundo presidente estadunidense. Paul Giamatti ganhou o globo de ouro pela interpretação do personagem. Se não por outro motivo, sua cena de adoração no último episódio -- infelizmente não disponível na rede -- vale o prêmio.

segunda-feira, outubro 19, 2009

"O Mestre disse: "Zilu, vou ensinar-te o que é o conhecimento. Tomar o que sabes pelo que sabes, e o que não sabes pelo que não sabes, isso é conhecimento"." (Conversações de Confúcio, 2.17)

Extraído do saite http://chines-classico.blogspot.com.

terça-feira, setembro 29, 2009

O Uso Da Força

por William Carlos Williams

Eles eram pacientes novos para mim, tudo o que tinha era o nome, Olson. Por favor desça assim que puder, minha filha está muito doente.

Quando cheguei fui recebido pela mãe, uma mulher grande, bonita e assustada, muito discreta e educada que disse apenas, É este o doutor? e então me fez entrar. Nos fundos, ela ajuntou. Você deve nos desculpar, doutor, estamos com ela na cozinha porque aqui está quente. Há muita umidade na cozinha às vezes.

A criança estava toda vestida e sentada no colo do pai perto da mesa da cozinha. Ele procurou se levantar, mas acenei para que não se desse ao trabalho, tirei meu sobretudo e comecei a trabalhar. Pude perceber que estavam todos muito nervosos, olhando-me de alto a baixo com desconfiança. Como de costume, eles não me diziam mais do que precisavam, era eu que devia informá-los; por esse motivo estavam gastando três dólares comigo.

A criança estava me engulindo com seus olhos frios e fixos, e não havia qualquer expressão em seu rosto. Ela não se mexia e parecia, por dentro, tranqüila; uma coisinha inesperadamente atraente, e forte como uma novilha na aparência. Mas seu rosto estava vermelho, ela respirava depressa, e percebi que ela estava com febre alta. Tinha um cabelo louro magnífico, em profusão. Uma daquelas modelos mirins que aparecem com freqüência em folhetos de publicidade e nas seções de fotogravura dos jornais de domingo.

Ela já está gripada há três dias, começou o pai e nós não sabemos de onde vem. Minha esposa deu a ela essas coisas, o senhor sabe, que as pessoas dão, mas não adiantou nada. E tem havido muita doença por aí. Então pensamos que seria melhor se o senhor a examinasse e nos dissesse qual o problema.

Como os médicos em geral fazem, interpretei a fala do pai como a minha deixa. Ela teve uma dor de garganta?

Ambos os pais me responderam juntos, Não... Não, ela diz que a garganta não dói.

A garganta está doendo? perguntou a mãe para a criança. Mas a fisionomia da menina não se alterou e ela não tirou os olhos de mim.

Você olhou?

Eu tentei, disse a mãe, mas não vi nada.

Como sói acontecer, nós vínhamos tendo alguns casos de difteria na escola que essa criança freqüentou durante aquele mês e nós todos estávamos, ao menos assim parecia, estarmos pensando nisso, embora ninguém tivesse mencionado ainda o fato.

Muito bem, disse eu, vamos dar uma olhada na garganta primeiro. Sorri à maneira mais profissional que tinha e perguntando à criança pelo seu primeiro nome, disse, vamos lá, Matilda, abra bem a boca e vamos dar uma olhada na sua garganta.

Não adiantou.

Ah, vamos lá, eu lisonjeei, só abra a boca bem grande e deixe-me dar uma olhada. Veja, disse abrindo bem ambas as mãos, não tenho nada nas mãos. Só abra a boca e deixe-me ver.

Que homem bom, ajudou a mãe. Veja como ele é gentil consigo. Vamos, faça o que ele manda. Ele não vai machucar você.

Neste ponto cerrei os dentes de desgosto. Se ao menos eles não usassem a palavra "machucar" eu poderia conseguir alguma coisa. Mas não me permiti ficar alterado ou inquieto mas falando calma e pausadamente me aproximei da criança de novo.

Conforme movia minha cadeira um pouco mais para perto, de repente com um movimento felino suas mãos instintivamente se atiraram em direção aos meus olhos e ela quase os alcançou também. Deveras, ela arrancou meus óculos, que foram parar, embora sem terem quebrado, uns dois metros dali no chão da cozinha.

A mãe e o pai quase morreram de vergonha pedindo desculpas. Sua menina malvada, disse a mãe, tomando-a de lado e chacoalhando-a num dos braços. Veja o que você fez. O bom homem...

Pelo amor de Deus, interrompi. Não me chame de bom homem na frente dela. Estou aqui para ver sua garganta com a possibilidade de que ela tenha difteria e possa morrer disso. Mas isso não significa nada para ela. Olhe aqui, disse para a criança, nós vamos olhar a sua garganta. Você tem idade o bastante para entender o que estou dizendo. Você vai abrir voluntariamente ou teremos que abrí-la para você?

Nem um movimento. Sequer a sua expressão mudou. A respiração no entanto ficava cada vez mais rápida. Então a batalha se iniciou. Eu tinha que fazê-lo. Tinha que tratar da garganta pelo seu próprio bem. Mas primeiro falei aos pais que devia ser decidido por eles. Expliquei o perigo mas disse que não insistiria num exame da garganta se eles não se responsabilizassem.

Se você não fizer o que o médico diz você vai ter que ir para o hospital, a mãe advertiu de modo severo.

Ah é? Tive que rir para mim mesmo. Depois de tudo, eu já tinha me apaixonado pela fedelha selvagem, e via os pais com desdém. Na luta seguinte eles ficaram mais abjetos, esmagados, exaustos enquanto ela com certeza se alçava a magníficas alturas de fúria insana nascida de seu terror por mim.

O pai fez o melhor, e ele era um homem grande mas o fato de ela ser sua filha, sua vergonha pelo comportamento dela e seu receio de machucá-la fê-lo soltá-la nos momentos críticos quando eu tinha quase alcançado êxito, até quis matá-lo. Mas seu receio também de que ela tivesse difteria fez com que ele me mandasse prosseguir, embora ele próprio estivesse quase desmaiando, enquanto a mãe ia e voltava atrás de nós levantando e abaixando as mãos numa agonia apreensiva.

Ponha-a na sua frente no seu colo, dei a ordem, e segure ambos os pulsos.

Mas tão logo ele o fez a criança soltou um grito, Não, você está me machucando. Me solta. Deixa eles irem estou falando. Então ela soltou gritos estridentes de modo aterrorizador, histérico. Páre! Páre! Você a está matando!

Você acha que ela pode agüentar, doutor! disse a mãe.

Saia daqui, disse o marido à esposa. Você quer que ela morra de difteria?

Vamos então, segure-a, eu disse.

Então segurei a cabeça da criança com minha mão esquerda e tentei pegar o músculo rígido da língua entre os dentes. Ela lutou, com os dentes cerrados, desesperadamente! Mas agora eu também estava furioso -- com uma criança. Tentei permanecer parado mas não consegui. Sei como posicionar uma garganta para examiná-la. E fiz o meu melhor. Quando por fim consegui antepor a espatela rígida atrás do último dente e o seu vértice bem na cavidade bocal, ela abriu por um instante mas antes que pudesse ver ela fechou de novo e apertando a rígida espátula entre os molares ela reduziu-a a lascas antes que eu pudesse tirá-la novamente.

Você não se envergonha, a mãe gritou com ela. Você não se envergonha de agir assim em frente do doutor?

Traga-me uma colher fácil de manusear de algum tipo, falei à mãe. Nós vamos continuar com isso. A boca da criança já estava sangrando. Sua língua tinha se cortado e ela gritava em estrépitos assustadoramente histéricos. Talvez eu devesse ter desistido e voltado uma hora depois ou mais. Sem dúvida teria sido melhor. Mas eu tinha visto pelo menos duas crianças deitadas mortas na cama por causa de negligência nesses casos, e sentindo que devia conseguir um diagnóstico agora ou nunca mais eu fui de novo. Mas o pior é que eu também tinha chegado a um ponto irracional. Eu poderia ter dilacerado a criança na minha fúria e gostar disso. Era um prazer atacá-la. Meu rosto inflamava-se com isso.

A maldita fedelha precisa ser protegida contra sua própria idiotice, dizemos para nós mesmos de vez em quando. Outros precisam ser protegidos dela. É uma necessidade social. E tudo isso é verdade. Mas uma fúria cega, um sentimento de vergonha adulta, nascido de um desejo pelo descanso muscular são as causas. Vai-se até o fim.

Num assalto final irrazoável eu me apossei do pescoço e da região maxilar da criança. Forcei a colher pesada de prata no fundo dos dentes dentro da garganta até ela engasgar. E ali estava -- ambas as amígdalas cobertas com uma membrana. Ela tinha lutado de modo valente para me impedir de saber o seu segredo. Ela vinha escondendo aqula dor de garganta por três dias pelo menos e mentindo a seus pais de modo a escapar de um resultado desses.

Agora realmente ela estava furiosa. Ela tinha estado na defensiva antes mas agora ela atacava. Tentou se livrar do colo do pai e voar em cima de mim enquanto lágrimas de derrota cobriam os olhos.


Tradução minha

domingo, setembro 06, 2009

A sabedoria de José Bonifácio

Na véspera do dia da Independência Brasileira, vejamos as palavras do patriarca sobre a administração do Brasil.

O documento chama-se Lembranças e Apontamentos, trata-se de instruções ao deputados da província de São Paulo junto às Cortes de Lisboa à época do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1821.

Atentai para a proposta de criação de uma universidade no Brasil.

"(...)

6o. Que se cuide em legislar e dar as providências mais sábias e enérgicas sobre dois objetos da maior importância para a prosperidade e conservação do Reino do Brasil: O 1o. sobre a catequização e civilização geral e progressiva dos Índios bravos, que vagam pelas matas e brenhas; sobre cujo objeto um dos Membros deste Governo dirige uma pequena Memória às Cortes gerais por mão de seus deputados; o 2o. requer imperiosamente iguais cuidados da Legislatura sobre melhorar a sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em Cidadãos ativos e virtuosos; vigiando sobre os Senhores dos mesmos escravos para que estes os tratem como homens e Cristãos, e não como brutos animais, como se ordenara nas Cartas Régias de 23 de março de 1688, e 27 de fevereiro de 1798, mas tudo isto com tal circunspecção que os miseráveis escravos não reclamem estes direitos com tumultos e insurreições, que podem trazer cenas de sangue e horrores. Sobre este assunto o mesmo Membro deste Governo oferece alguns apontamentos e idéias ao Soberano Congresso.

7o. Não podendo haver Governo algum Constitucional que dure sem a maior instrução e moralidade do povo, para que a primeira se aumente e promova, é de absoluta necessidade, que além de haver em todas as Cidades, Vilas e Freguesias consideráveis, escolas de primeiras Letras pelo método de Lancaster com bons catecismos para leitura e ensino de meninos, de que temos excelentes modelos na língua Alemã e Inglesa, haja também em cada Província do Brasil um Ginásio ou Colégio, em que se ensinem as ciências úteis; para que nunca faltem, entre as classes mais abastadas, homens que não só sirvam os Empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo Povo os conhecimentos, que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da Nação; pois segundo diz Bentham, as ciências são como as plantas, que tem crescimento em dois sentidos, em superfície e em altura, e quanto às mais úteis é melhor espalhá-las que adiantá-las. Assim, nos parece necessário que Cada Província do Reino do Brasil na Capital tenha as Cadeiras Seguintes: 1a. uma de Medicina teórica e prática; 2a. de Cirurgia e arte obstetrícia; 3a. outra de arte Veterinária (Estas três Cadeiras, principalmente as duas primeiras, são de absoluta necessidade para a Província de São Paulo); 4a. uma de elementos de Matemática; 5a. outra de Física e Química; 6a. outra de Botânica e Horticultura experimental; 7a. por fim, outra de Zoologia e Mineralogia.

8o. Além destes Colégios, é de absoluta necessidade para o Reino do Brasil, que se crie desde já pelo menos uma Universidade, que parece que deverá constar das seguintes Faculdades: 1a. Faculdade Filosófica composta de três Colégios: 1o. de Ciências Naturais, 2o. de Matemáticas Puras e Aplicadas, 3o. de Filosofia especulativa e boas Artes; 2a. de Medicina; 3a. de Jurisprudência; 4a. de Economia, Fazenda e Governo. Cada uma dessas Faculdades terá as Cadeiras necessárias para o completo ensino de todos os conhecimentos humanos. A Teologia pode ser ensinada nos Seminários Episcopais, para que tenhamos Clero douto e capaz, o qual absolutamente falta no Brasil. O clima temperado, mais frio que quente, a salubridade dos ares, a barateza e abundância de comestíveis, e a fácil comunicação com as Províncias, centrais e de beira-mar, que requerem que esta Universidade resida na Cidade de São Paulo, que tem já edifícios próprios para as diversas faculdades nos Conventos do Carmo, São Francisco e dos Bentos apenas habitados por um ou dois frades quando muito.

(...)"*

*Colaborou Stella Caymmi


Fonte: Andrada e Silva, José Bonifácio de. Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo. 1821.
Disponível em http://www.obrabonifacio.com.br/colecao/obra/1266/digitalizacao/pagina
Acesso em 06/09/2009.

terça-feira, agosto 25, 2009

Voegelin e o direito

Prezados,

publico aqui minha monografia de conclusão do curso de direito. O formato a seguir é dado pelo saite slideshare.net. Na barra de ferramentas ao lado também colocarei um linque permanente para quem quiser baixar em arquivo pdf.

A monografia Voegelin e o direito trata sobretudo da obra "The Nature of the Law", que o filósofo alemão organizou quando proferia seu curso sobre ciência do direito na universidade da Louisiana. Tentei relacionar a especulação de Voegelin com outros autores, bem como ambientá-la na vida social brasileira.

Espero que o leitor goste do trabalho; as suas sugestões, críticas e correções são bem-vindas.

terça-feira, agosto 18, 2009

A formação do congresso nos Estados Unidos da América

O senhor jurista Dalmo de Abreu Dallari, respondendo a uma deixa da entrevistadora, "E assim, mantiveram a escravidão por 80 anos...", disse:
"Exatamente, e o Senado foi feito exatamente para isto. Para manter a escravidão, surgiu a idéia de uma Câmara revisora, o Senado, pois acreditavam que o Legislativo cometeria excessos democratizantes sem essa revisora."

Ou seja, o sistema bicameral, que ele critica em livro no prelo, foi criado com o objetivo de perpetuar a escravidão nos Estados Unidos da América. Senhor Dallari, data vênia, o senhor está errado.

O propósito principal do plano de criar duas casas para o Congresso era de que em uma casa o povo deve ser representado, enquanto na outra os Estados. A questão da escravidão não era tão flagrante como quer fazer crer o senhor Dalmo Dallari. A principal e óbvia questão por trás da escolha do sistema bicameral de representação diversa foi a de que os estados com população pequena poderiam ser solapados nas discussões no congresso se o modelo adotado fosse tão só o da representação por cada cidadão. Adotou-se uma solução de compromisso então, o 'Connecticut Compromise'. O estado de Virgínia, que futuramente viria a integrar e mesmo a liderar os estados confederados do sul durante a guerra de secessão, à época da convenção da Filadélfia, cujo resultado foi a redação da Constituição Federal, tinha a maior população dos Estados. Por causa disso, esse estado da Virginia, veja bem, o mesmo estado que anos depois se desligaria da União, também advogava abertamente a adoção de um sistema em que ambas as casas do Congresso seriam formadas por representantes eleitos apenas segundo o voto popular. O estado de New Jersey, por sua vez, desejava uma única casa em que os estados seriam representados igualmente, cada estado tendo o mesmo número de representantes no parlamento. O estado de New Jersey, como se sabe, faz parte da Nova Inglaterra, o conjunto de estados que ou não tinham escravos ou iriam eliminá-los antes da guerra -- na realidade, o estado de Nova Jersey foi o único estado da Nova Inglaterra, ou seja, dos estados do Norte, onde a escravidão só foi abolida para valer depois da guerra de secessão.

A tese do senhor Dalmo de Abreu Dallari revela-se furada pela exposição dos fatos. Essa tese é própria de pessoas que têm uma visão muito superficial dos Estados Unidos da América, as quais enxergam a escravidão no país como a única questão nacional.

Ne nuntium necare

Não mata o mensageiro.

terça-feira, agosto 04, 2009

Obama e a Bíblia

Além de um riso de escárnio que não conseguiu segurar, Obama também faz considerações razoáveis sobre a Bíblia.