quarta-feira, março 26, 2008

Noção de justiça em Ésquilo e Sófocles

As trilogias do teatro grego Oréstia e tebana, de Ésquilo e Sófocles, guardam noções de justiça diferentes e complementares. Na peça Eumênides, de Ésquilo, Orestes, que matara sua mãe Clitemnestra em retribuição pelo assasinato cometido por ela contra seu pai, o rei Agamenon que voltava vitorioso para a pátria ao fim da guerra de Tróia, sofre a perseguição das Fúrias, as quais desejam aplacar seu ódio pelo matricídio cometido. Orestes se purificara perante os deuses do homicídio e agora busca refúgio em Atenas, a deusa da cidade de Atena e matrona da justiça. Orestes praticou o ato movido também pelo deus Apolo, cujo oráculo o esconjurou com maldições se não vingasse seu pai. Atena acolhe então o suplicante, mas reconhece que as Fúrias devem ser reparadas.

Reproduzo a fala de Atena que decide o caso:

"Se se considerar que o caso é muito grave
para ser decidido por simples mortais,
tampouco terei permissão para julgar
os criminosos motivados em seus atos
pelo desejo rancoroso de vingança;
sob outro aspecto, chegas como suplicante,
purificado pelos ritos pertinentes
e inofensivo para o meu sagrado altar.
Por isso minha decisão é acolher-te
pois tua vinda não ofende esta cidade.
Mas estas criaturas que te perseguiram
sem dúvida são detentoras de direitos
merecedores de toda a nossa atenção;
se lhes negarmos a vitória em sua causa
todo o veneno do seu ódio cairá
sobre esta terra como um mal intolerável
trazendo-nos intermináveis amarguras.
Nesta situação, quer eu lhes dê ouvidos,
quer não as favoreça, terei de sofrer
inevitáveis dissabores. Entretanto,
já que a questão chegou a meu conhecimento
indicarei juízes de crimes sangrentos,
todos comprometidos por um juramento,
e o alto tribunal assim constituído
terá perpetuamente essa atribuição.
Apresentai, então, vós que estais em litígio,
testemunhas e provas--indícios jurados
bastante para reforçar vossas razões.
Retornarei depois de escolher os melhores
entre todos os cidadãos de minha Atenas,
para que julguem esta causa retamente,
fiéis ao juramento de não decidirem
contrariamente aos mandamentos da justiça."
(tradução do grego de Mario da Gama Kury)

Na trilogia tebana de Sófocles, na peça Antígona, a personagem de mesmo nome é filha do rei amaldiçoado Édipo, que por engano assassinara seu próprio pai e casara com a mãe. Antígona é filha dessa união, bem como seu irmão Polinices. Depois que Édipo descobre a tragédia que recaía sobre si, Polinices vai embora da cidade de Tebas e encontra refúgio na cidade inimiga de Argos. Na guerra entre as duas cidades, Polinices morre, bem como seu irmão Eteocles, o qual permancera em Tebas. Contrariando um decreto do rei Creon, que mandara que o corpo de Polinices fosse deixado insepulto para os cães e pássaros comerem, Antígona enterra seu irmão, honrando-o com as devidas preces aos deuses. Furioso, o rei Creon exige que Antígona seja punida.

Antígona fala em sua defesa, respondendo a Creon:

Creon--E mesmo assim você ousou quebrar essas mesmas leis?

Antígona--Sim. Zeus não anunciou essas leis para mim. E a Justiça que vive nos deuses abaixo não enviou tais leis para os homens. Não considerei qualquer coisa que você tenha proclamado forte o bastante para deixar que um mortal sobreponha-se aos deuses e suas leis não escritas e imutáveis. Elas não são justas para hoje ou ontem, mas existem sempre, e ninguém sabe onde apareceram pela primeira vez. Então não me permiti que um medo de alguma vontade humana levasse a minha punição entre os deuses. Sei muito bem que vou morrer- como não iria?-não faz diferença o que você decreta. E se eu tenho que morrer antes do meu tempo, bom, eu conto isso como um ganho. Quando alguém deve viver do jeito que eu vivo, cercada por tantas coisas más, como pode ela não achar um benefício na morte? De modo que para mim encontrar esse destino não me trará qualquer medo. Mas se eu permitisse que o próprio filho morto de minha mãe permanecesse ali, um corpo insepulto, então eu me sentiria desgraçada. O que acontece aqui não me atinge de modo algum. Se você crê que o que estou fazendo agora é estúpido, talvez eu esteja sendo acusada com insensatez por alguém que é um insensato.
(tradução de Daniel Lourenço da versão inglesa de Ian Johnston)

Na primeira peça a deusa Atena reconhece que o caso é dificílimo e trar-lhe-á dissabores. Sabe que o correto é acolher o suplicante Orestes, mas ao mesmo tempo reconhece razão no pleito das Fúrias e por isso firma em seu benefício uma reparação. Na segunda peça, Antígona segue seu coração e enterrar seu irmão a despeito da ordem do rei. Ao final, o rei Creon desiste de sua decisão aceitando a contra-gosto a profecia do adivinho Tirésias que prognostica tempos ruins para a cidade de Tebas se o corpo de Polinices não for enterrado e Antígona punida.

Em Eumênides, põe-se de lado a justiça precisa, cabal, em favor de uma justiça que aceita como justa também a pretensão do sucumbente, as Fúrias. E veja que é uma deusa que assim decide! Em Antígona, a distinção entre lei humana e lei divina é clara, devendo prevalecer essa.

Em face de casos dificílimos como o de Orestes, o direito brasileiro dá a um tribunal formado por homens do povo a autoridade de decidir o destino do acusado em caso de crimes dolosos contra a vida. Muito diferente é a situação de um traficante de drogas que mata um comprador inadimplente e a de um filho que mata a mãe assassina de seu pai, embora o ato seja o mesmo.

Na doutrina atual da resolução de casos em que pretensões calcadas em direitos importantes se conflituam, há juízes e autores que procuram soluções de compromisso e outros que afirmam não haver conflito entre direitos, bastando perquerir com mais argúcia o caso para encontrar o verdadeiro direito.

Por via das dúvidas, faço como os romanos: rezo à deusa Iustitia para ser justo.

3 comentários:

Anônimo disse...

meu deus

jessika disse...

meu deus

Anônimo disse...

mel déus