segunda-feira, outubro 18, 2021

Idos de março, parte 1

O mestre do colégio dos áugures para Caius Julius Caesar, pontífice supremo e ditador do povo romano.
(Cópias para o sacerdote de Júpiter Capitolino, à madame presidente do colégio das vestais virgens etc. etc.)
Primeiro de setembro de 45 AC.
Ao reverendíssimo supremo pontífice:
Sexto relatório do dia.
Leituras do sacrifício da tarde:
Um ganso: nódoas no coração e fígado. Hérnia do diafragma.
Segundo ganso e um galo: Nada a observar.
Um pombo: Condição péssima, rim fora do lugar, fígado inflado e de coloração amarelada. Pigmentos rosas no papo. Ordenou-se averiguar mais detalhes.
Segundo pombo: Nada a observar.
Vôos observados: uma águia cinco quilômetros ao norte do monte Soracte até o limite da visão sobre Tivoli. A ave demonstrou incerteza de direção em sua aproximação da cidade. Trovão: nenhum trovão foi ouvido desde aquele último relatório de doze dias atrás.
Saúde e vida longa ao supremo pontífice.
I-A Anotação confidencial de César a seu secretariado eclesiástico.
Item I. Informe o mestre do colégio que não é necessário me enviar dez a quinze relatórios por dia. Um relatório-síntese único das observações do dia precedente é o bastante.
Item II. Selecione dos relatórios dos quatro últimos dias três auspícios favoráveis e três desfavoráveis. Pode ser que eu precise deles no Senado hoje.
Item III. Elaborem e distribuam uma notificação com o seguinte teor:

Tendo sido estabelecido o novo calendário, a comemoração da fundação da cidade no dia 17 de cada mês será elevada agora a rito da mais alta importância cívica.

O supremo pontífice, caso se encontre na cidade, estará presente em cada ocasião.

Todo o ritual será observado com as seguintes adições e correções:

Duzentos soldados deverão estar presentes e invocarão a Marte tal como é costume nos postos militares.

A adoração a Réia será prestada pela vestais virgens. A presidente do colégio ficará responsável pessoalmente por esta cerimônia, pela excelência da apresentação e pelo decoro das participantes.

Os abusos que se insinuaram no ritual serão corrigidos de imediato; esses celebrantes ficarão invisíveis até o fim da procissão e não se recorrerá ao modo mixolídio.

O testamento de Rômulo será dirigido aos assentos reservados à nobreza.

Os sacerdotes em diálogo com o supremo pontífice falarão a língua castiça. Sacerdotes que falhem em qualquer ponto terão trinta dias de treinamento e serão enviados para servir nos novos templos na África e na Bretanha.

I-B Carta de Caesar a Lucius Mamilius Turrinus na ilha de Capri.
968. [Sobre ritos religiosos]
Estou anexando no pacote da semana meia dúzia dos inúmeros relatórios os quais, como pontífice supremo, recebo dos áugures, adivinhos, observadores dos céus e avicultores.

Anexo também as diretrizes que fixei para a comemoração mensal da fundação da cidade.

O que deve ser feito?

Eu herdei esse fardo de superstição e nonsense. Governo inúmeros homens, mas devo reconhecer que sou governado por aves e trovões.

Tudo isso obstrui, com freqüência, a operação do Estado; fecha as portas do Senado e das cortes por dias e semanas a cada vez. Emprega milhares de pessoas. Quem quer que tenha algo com isso, incluindo o pontífice supremo, manipula a coisa para seu próprio benefício.

Uma tarde, no vale do Reno, os áugures locais me proibiram de dar batalha ao inimigo. Parece que nossas galinhas sagradas estavam comendo cheias de melindres. As madames galináceas estavam cruzando as patas enquanto andavam; estavam inspecionando os céus com freqüência e muito inquietas, certamente por um bom motivo. Eu mesmo, quando entrei no vale, fiquei desalentado ao observar que era o antro das águias. Nós, generais, somos reduzidos a ver o céu com o olhar de uma galinha. Eu acedi por um dia, embora na minha capacidade de surpreender o inimigo está uma de minhas poucas vantagens, e temi que estaria igualmente impedido pela manhã. Aquela noitinha, porém, Asinius Pollio e eu fomos caminhar pelos bosques; pegamos uma dúzia de larvas; então as misturamos em bolos com nossa facas e as distribuímos pelo curral sagrado. Na manhã seguinte todo o exército aguardava em suspense para ouvir a vontade dos deuses. As fatídicas aves foram levadas a comer. Primeiro, elas inspecionaram os céus emitindo aquele chilro de alarme que é suficiente para deter dez mil homens; mas então viraram-se para a comida. Por Hércules, seus olhos sobressaltaram-se; deram gritos arrebatados de gula; voaram para seu repasto e eu fui autorizado a vencer a batalha de Colônia.
Acima de tudo, porém, esses ritos atacam e minam o próprio espírito nas mentes dos homens. Eles proporcionam aos nossos romanos, dos varredores de ruas ao cônsules, um vago senso de confiança onde não há confiança alguma e, ao mesmo tempo, um medo impregnante, um medo que nem incita à ação nem inspira a inventividade, mas que paralisa. Eles removem dos ombros dos homens a obrigação contínua de criar, momento a momento, a sua própria Roma. Eles chegam até nós sancionados pelo uso de nossos ancestrais e exalando a segurança de nossa infância; bajulam a passividade e consolam a deficiência.
Eu posso com os demais inimigos da ordem: a arruaça desregrada e violência de Clodius; os murmuradores descontentes da laia de Cícero e Brutus, nascidos da inveja e alimentados pelas teorias sutis de velhos textos gregos; os crimes e a ganância de meus procônsules e indicados; mas o que eu posso contra a apatia satisfeita de se vestir com o manto da piedade, que me diz que Roma será salva por deuses que a tudo supervisionam ou que se resigna ao fato de que Roma conhecerá a ruína porque os deuses são malfazejos?
Não sou dado a reflexões, mas me vejo pensando nesse assunto com freqüência.
O que fazer?
Às vezes, à meia-noite, tento imaginar o que aconteceria se eu abolisse tudo isso; se, na qualidade de ditador e supremo pontífice, eu abolisse todos os ritos dos dias de sorte e de azar, de entranhas e vôos dos pássaros, de trovôes e raios; se fechasse todos os templos, com exceção do de Júpiter Capitolino.
E Júpiter?
Você vai saber mais a respeito.
Prepare seus pensamentos para meus conselhos.

A noite que vem.

[A carta continua em grego]
É meia-noite de novo, meu caro amigo. Estou sentado ao lado da janela, desejando que ela pairasse sobre a cidade adormecida e não sobre os jardins trasteverinos dos ricos. Os ácaros dançam pela minha lamparina. O rio mal reflete a luz difusa das estrelas. Na outra margem, alguns cidadãos bêbados estão discutindo numa taberna e, de quando em quando, meu nome chega-me aos ouvidos. Deixei minha esposa dormindo e tentei acalmar meus pensamentos lendo Lucrécio.
A cada dia sinto mais pressão sobre mim, pressão que vem da posição que ocupo. Estou mais e mais consciente do que me possibilita conquistar, do que me impele a conquistar.
Mas o que ela está me dizendo? O que requer de mim?
Pacifiquei o mundo; estendi os benefícios da lei romana a homens e mulheres inumeráveis; contra uma oposição grande, estou estendendo a eles os direitos de cidadania também. Reformei o calendário e nosso dias são regulados por um acerto útil dos movimentos do sol e da lua. Estou providenciando que o mundo seja alimentado de maneira equitativa; minhas leis e minhas esquadras vão ajustar a intermitência das colheitas e dos excedentes à necessidade pública. Mês que vem a tortura será removida do código criminal.
Mas isso não é o bastante. Essas medidas são apenas a obra de um general e de um administrador. Com elas, sou, para o mundo, o mesmo que um prefeito é para uma cidade. Agora outra obra deve ser realizada, mas o quê? Sinto como se agora, e apenas agora, estou pronto para começar. A canção na boca de todos me chama: pai.

Pela primeira vez na minha vida pública estou inseguro. Minhas ações têm, até o momento, se conformado a um princípio que poderia chamar de superstição: eu não faço experimentos. Não inicio uma ação para ser instruído pelos seus resultados. Na arte da guerra e nas operações políticas eu nada faço sem uma intenção particularmente precisa. Se um obstáculo aparece, imediatamente eu elaboro um plano novo, e cada potencial conseqüência me é clara. Do momento em que vi que Pompeu relegou uma pequena porção de cada empreendimento ao acaso, eu sabia que seria o senhor do mundo.

Os projetos que agora batem à minha porta, no entanto, envolvem elementos de que não estou certo de estar certo. Para realizá-los devo ter claro na minha mente quais são os objetivos de vida do homem médio e quais são as capacidades do ser humano.

Homem – o que é isto? O que sabemos dele? Seus deuses, liberdade, mente, amor, destino, morte – o que significam? Você há de se lembrar de como eu e você, quando jovens em Atenas, e ainda depois, em frente a nossas tendas na Gália, discutíamos esses assuntos noite adentro. Sou um adolescente de novo, filosofando. Como Platão, o perigoso sedutor, disse: "os melhores filósofos do mundo são garotos que acabam de crescer uma barbicha"; pois, sou um garoto novamente.
Mas veja o que fiz neste intervalo relativo a essa questão de religião estatal. Eu lhe dei força quando reestabeleci a comemoração mensal da fundação da cidade.
Eu o fiz, talvez, para explorar em mim mesmo quaisquer vestígios finais dessa piedade que ainda posso entrever ali. Lisonjeia-me também saber que sou, dentre todos os romanos, o maior erudito nas tradições religiosas antigas, tal como minha mãe foi antes de mim. Confesso que, enquanto declamo as toscas orações e movimentos no ritual complicado, sou tomado de uma emoção real; mas a emoção não tem nada a ver com o mundo sobrenatural: lembro-me de mim mesmo quando, aos dezenove anos, na qualidade de sacerdote de Júpiter, ascendi o Capitólio com minha Cornelia ao lado, o nascituro Julia sob seu espartilho. Que momento a vida me ofereceu igual àquele?
Silêncio! Acabou de haver a troca de guarda em minha porta. Os sentinelas ressoaram suas espadas e trocaram senhas. A senha para esta noite é CAESAR VIGIA.

domingo, setembro 26, 2021

Os números são percebidos pelo fenômeno da repetição.

Sem a repetição, sem a percepção da identidade de duas coisas, que, enquanto tais, formam um grupo, tudo seria um. E o próprio um só pode ser percebido pelo seu desdobrar na multiplicidade.

Na multiplicidade, o um é percebido como o grupo mesmo dos múltiplos, que, sem isso, não poderiam ser contados. Também pode ser percebido como o aspecto idêntico que permite a contagem dos distintos.