sexta-feira, janeiro 20, 2023

Marxismo chinês

"Revoluções proletárias podem ser realizadas por massas não proletárias, elevadas para a tarefa por uma vanguarda ela própria formada por não proletários, desde que todos estejam imbuídos da teoria apropriada – a qual, por sua vez, é o produto de intelectuais não proletários." (James Gregor)

O proletariado, portanto, é apenas um símbolo aglutinador. Se a teoria de Marx já tinha o problema de ter sido inventada por um intelectual não proletário, quando a própria teoria afirmava que o proletariado desenvolveria a consciência de sua exploração, no curso do século XX os intelectuais marxistas abandonam por completo a tese de que o proletariado realizará sua auto-libertação. Lênin diz que, deixada por si, a consciência do proletariado não passará da noção de que precisa se organizar em sindicatos, tacitamente aceitando o regime burguês-capitalista-imperialista e abandonando, portanto, qualquer tentação revolucionária. Para alcançar esse patamar de consciência, seria preciso, então, a vanguarda revolucionária, responsável por desenvolver uma consciência possível do proletariado.
Mas, e quando não há proletariado algum cuja consciência teria que ser desenvolvida? Quando a massa a ser guiada é campesina, por exemplo, como na China dos anos 1930? A própria revolução criaria seu proletariado? Restará, pois, o símbolo aglutinador, o símbolo de um conjunto de pessoas – ou nações – oprimidas a se alçar contra seus opressores. É o que proletariado significará. O próprio fascismo usará a expressão nação proletária, em oposição às nações plutocratas. Mas o fascismo é assunto para outra hora. Embora Lênin, Mao Tsé-Tung e Mussolini tenham muitos elementos teóricos em comum, uma diferença fundamental é que Mussolini deixou de se qualificar como marxista (para quem não sabe, até os anos 1910 ele era o líder do partido socialista italiano), enquanto Lênin e Mao Tsé-Tung, ainda que alterassem, tal como Mussolini, a teoria de Marx, sempre se qualificaram como marxistas ortodoxos. Lênin e Stalin perseguiriam os marxistas que qualificaram de heterodoxos.
Lênin dá ênfase ao conceito de imperialismo. Ora, para resistir ao imperialismo dos regimes capitalistas, seria preciso desenvolver uma consciência anti-colonial. É o que será feito no Comintern, a internacional comunista dirigida de Moscou. Qual noção ajudaria muito na luta anti-colonial? A noção de nacionalismo; aquela mesma que levara o proletariado a abandonar sua missão histórica para matar camaradas de classe na grande guerra de 1914; mas que, agora, não cairia mal. O movimento marxista viverá, então, a tensão entre internacionalismo e nacionalismo, disfarçado este em luta anti-imperial. A luta anti-imperial, aliás, seria a noção usada por Stálin para justificar a aliança com Hitler que repartiria o Leste europeu.

Quem pegou o gancho do nacionalismo foi Mao Tsé-Tung, bebendo de Sun Yat-sen e de seu programa dos três princípios. Uma vez expulsos os japoneses, findo o século da humilhação, o socialismo com características chinesas ainda atravessaria uma longa marcha stalinista, inclusive por falta de opção, até a abertura comercial, facilitada pela aproximação com os EUA nos anos 70.
O relatório do congresso do partido comunista chinês de 2022 menciona marxismo milhares de vezes. Como a ideologia marxista se encaixa num país que viveu uma revolução capitalista nos últimos 40 anos e caminha para se tornar o país mais rico do mundo? Seria "a China tão comunista quanto a máfia siciliana é católica"?
A China é um país que controla com rédeas curtas a religião, mas Xi Jinping mencionará o "mandato dos céus" várias vezes. Ele fala também: "Os valores socialistas que advogamos hoje representam a herança e a atualização da impressionante cultura tradicional chinesa".
A economia chinesa tem a participação do Estado em cada grande empresa. A China tem cara de fascismo, mas não irá, como Mussolini, rejeitar seu passado marxista.
Do relatório acima citado:
"Para defender e desenvolver o marxismo, devemos integrá-lo às realidades específicas da China. Tomar o marxismo como nosso guia significa aplicar sua visão de mundo e metodologia para resolver problemas na China; não significa memorizar e recitar suas conclusões e linhas específicas, e menos ainda tratá-lo como um dogma rígido. Devemos continuar a libertar nossas mentes, buscar a verdade nos fatos, acompanhar os tempos e adotar uma abordagem realista e pragmática. Devemos basear tudo o que fazemos nas condições reais e nos concentrar na solução de problemas reais que surgem em nossos esforços de reforma, abertura e modernização socialista na nova era. Devemos continuar respondendo às questões colocadas pela China, pelo mundo, pelas pessoas e pelos tempos; ao fazê-lo, devemos encontrar as respostas certas e adequadas às realidades da China e às necessidades de nossos dias, chegar a conclusões compatíveis com leis objetivas e desenvolver novas teorias que estejam em sintonia com os tempos, de modo a fornecer uma melhor orientação para a prática da China.
Para defender e desenvolver o marxismo, devemos integrá-lo à bela cultura tradicional da China. Somente criando raízes no rico solo histórico e cultural do país e da nação, a verdade do marxismo pode florescer aqui. Com uma história que remonta à antiguidade, a bela cultura tradicional da China é extensa e profunda; é a cristalização da sabedoria da civilização chinesa. Nossa cultura tradicional defende muitos princípios e conceitos importantes, incluindo a busca do bem comum para todos; considerando o povo como fundamento do Estado; governando pela virtude; descartando o ultrapassado em favor do novo; selecionando funcionários com base no mérito; promovendo a harmonia entre a humanidade e a natureza; buscando incessantemente o auto-aperfeiçoamento; abraçando o mundo com virtude; agindo de boa fé e sendo amigável com os outros; e fomentando a vizinhança. Essas máximas, que tomaram forma ao longo de séculos de trabalho e vida, refletem a forma de ver o universo, o mundo, a sociedade e a moral do povo chinês e são bastante consistentes com os valores e proposições do socialismo científico."

segunda-feira, abril 11, 2022

Idos de Março II

 "II A dama Clodia Pulcher, de sua vila em Baiae na baía de Nápoles, para o mordomo de sua casa em Roma.

II A dama Clodia Pulcher, de sua quinta em Baiae na baía de Nápoli, para o mordomo de sua casa em Roma.

[3 de setembro de 45 AC]
Meu irmão e eu vamos oferecer um jantar no último dia do mês. Se quaisquer falhas ocorrerem desta vez, vou substituí-lo e pô-lo à venda.
Convites foram enviados ao Ditador, à sua esposa e tia; a Cícero; a Asinius Pollio; e a Gaius Valerius Catullus. Todo o jantar será servido à moda antiga, ou seja, as mulheres estarão presentes apenas na segunda parte do jantar e não se reclinarão.
Se o Ditador aceitar este convite, o protocolo estrito será seguido. Comece a treinar os serviçais imediatamente: a recepção no portão, a liteira, o tour pela casa, a saudação final. Providencie a contratação de doze trompetistas. Infome os sacerdotes de nosso templo que eles deverão executar a cerimônia adequada à recepção do Supremo Pontífice.
Não apenas você, meu irmão também, vai provar os pratos do Ditador em sua presença, como era feito outrora."
O cardápio dependerá das novas modificações nas leis suntuárias. Se elas forem aprovadas por volta do dia do jantar, apenas uma entrada será servida a todos os comensais. Será o ragu egípcio de frutos do mar que o Ditador uma vez lhe descreveu. Não sei nada a respeito; procure imediatamente seu chefe e aprenda como prepará-lo. Quando você se sentir seguro com a receita, faça-o pelo menos três vezes para garantir que esteja perfeito na noite do jantar.
Se a nova lei não tiver sido aprovada, serviremos uma variedade de pratos.
O Ditador, meu irmão e eu receberemos o ragu. Cicero receberá cordeiro no espeto à moda grega. A esposa do Ditador receberá a cabeça de carneiro com maçãs assadas que ela tanto elogiou. Você enviou a receita que ela lhe pediu? Se sim, mude a receita um pouquinho; sugiro que adicione três ou quatro pêssegos embebidos em aguardente albanesa. À senhora Julia Marcia e a Valerius Cattulus serão oferecidos esses pratos para sua escolha. Asinius Pollio provavelmente não comerá nada, como de costume, mas deixe preparado um tanto de leite quente de cabra e mingau lombardo. Deixo a escolha dos vinhos totalmente com você; observe as leis a respeito.
Eu vou querer vinte a trinta dúzias de ostras carregadas em redes dentro da água até Óstia. Algumas podem ser trazidas a Roma no dia do jantar.
Procure imediamente Eros, o mímico grego, e contrate-o para o evento. Provavelmente ele se fará de difícil, como de hábito; você pode mencionar por alto a qualidade dos convidados que estarei esperando. Quando terminar a conversa, pode dizer-lhe que, além do cachê usual, ainda vou lhe dar o espelho de Cleópatra. Diga-lhe que desejo que ele e sua trupe apresentem "Afrodite e Hefesto" e "A procissão de Osíris", de Heronda. Desejo que declame, sozinho, "O ciclo do tecedor de coroas", de Safo.
Vou deixar Nápoles amanhã. Fico durante uma semana com a família de Quintus Lentulus Spinther em Cápua. Estarei esperando uma carta sua contando-me como meu irmão tem passado os dias. Espere minha chegada por volta do dia 10.
Desejo um relatório seu sobre como podemos apagar todas essas pichações envolvendo nossa família em locais públicos. Quero que seja bem completo.
[O que Clódia quis dizer com esse último parágrafo é ilustrado numa passagem das cartas de Cicero e por alguns grafites específicos]


II-A Cícero, em Roma, para Atticus, na Grécia

[escrito na primavera deste ano]

Atrás apenas do mestre de todos nós, Clodia se tornou a pessoa mais comentada em Roma. Versos de obscenidade extravagante a seu respeito são rabiscados nas paredee e pavimentos de todos os banhos e banheiros de Roma. Foi-me dito que há uma sátira extensa dedicada a ela no vestiário dos banhos de Pompeu; dezessete poetas já deram sua contribuição; ganha adições diárias. Foi-me dito que em boa parte gira em torno do fato de ela ser viúva, filha, sobrinha, neta e bisneta de cônsules e de que seu ancestral Appius foi o primeiro a percorrer a estrada na qual ela, agora, busca consolo, e quem sabe uma companhia remunerada.

A madame, dizem, ouviu falar dessas homenagens. Três esfregadores se dedicam a cada noite à atividade subrreptícia de apagar rastros. Eles estão exaustos; não têm como dar conta.

Nosso senhor (César) não precisa contratar gente para apagar calúnias. Há versos indecentes por todo o lado; porém, para cada defamador, ele possui três advogados. Seus veteranos se rearmaram com esponjas.

A poesia virou uma febre em nossa cidade. Me foi dito que os versos desse Catullus recém-chegado – versos também dirigidos a Clodia, embora numa veia diferente –  estão igualmente rabiscados em nossos prédios públicos. Os vendedores de tortas sírios aprenderam-nos de cor. O que você pensa a respeito? Sob o poder absoluto de um único homem nossos ofícios nos são arrancados, ou perdem sua graça. Não somos cidadãos, mas escravos, e a poesia é o recurso de um ócio imposto.

II-B Grafite rabiscado nos muros e pavimentos de Roma.

......

Clodius Pulcher no Senado diz a Cícero:
minha irmã não cederia; não me mostraria o pezinho, ele diz.
Oh, retruca Cícero, pensamos que ela fosse mais generosa.
Pensamos que ela lhe mostraria acima do joelho, ele diz.

......

Os ancestrais dela entregaram a via Ápia. Caesar
pegou essa Ápia e ela se entregou de outra maneira.
Kkkkkkkkk

......

A garota de um pêni é uma milionária,
mas avara e nada preguiçosa;
orgulhosa que só ela exibe seus cinquënta pénis na alvorada.

......

Mês a mês, Caesar comemora a Fundação da Cidade.
Hora a hora, a extinção da República. 

......

[Encontrou-se, com variações, a canção popular seguinte desenhada em lugares públicos por toda a parte.]

O mundo é de Roma e os deuses a deram a Caesar;
Caesar é um descendente dos deuses, e um deus.
Ele, que nunca perdeu uma batalha, é um paia para cada soldado.
Ele plantou a sola do sandália ma boca do homem rico,
mas, para o pobre, é um amigo e um confortador.
Sendo assim, você sabe que os deus amam Roma:
eles a deram a Caesar, seu descendente e um deus.

......

[Os versos seguintes de Catullus parecem ter sido adotados pelo público geral decara; em um ano já haviam alcançado as partes mais remotas da Repúblicas na forma de aforismos proverbiais anônimos:]

Os sóis se põem e podem, de novo, nascer;
Mas tão logo nossa breve luz se põe
A noite é para sempre e deve ser dormida.  

terça-feira, fevereiro 08, 2022

Assisti ao vídeo de André Muniz, incorporado abaixo, sobre o Livro de Urântia. Comento-o.

2:55. Ele diz que o livro foi publicado em 1935. Foi em 1955.

3:00 Diz que seus autores são extraterrestres. Isso é tão verdade quanto dizer que o autor do Corão é extraterrestre. O arcanjo Gabriel não nasceu na Terra, logo é um extraterrestre. Só que, ao dizê-lo, André dá um tom depreciativo ao livro, porque, na imaginação das pessoas, ETs são tipos como o ET de Varginha. Não, os autores do livro não são do gênero do ET de Varginha. São do gênero do arcanjo Gabriel e outras ordens celestes. Portanto, dizer que os autores do livro são ETs é ludibriar o ouvinte.

4:00 André parece guardar uma zanga porque Jesus tem papel preponderante no livro, porque está num patamar acima ao de, por exemplo, Sidarta Gautama (ele é budista). E porque o livro segue um itinerário de ascensão espiritual semelhante ao do cristianismo: a alma ressuscita, passa por mundos e mundos e chega ao Paraíso.

4:50 Ele dá a entender que o EU SOU é uma figura central do Livro. Não é. Ao tratar de Deus, a noção central é a de Pai. E, a partir do Pai, as figuras do Filho, do Espírito, da Trindade. Novamente a zanga com a tradição judaico-cristã.

5:35  Jesus não é o Filho unigênito de Deus, existem milhares de Filhos de Deus. Sim, correto. Jesus é um Filho de Deus, o Pai Criador de nosso universo (há outros).

6:00 O Livro de Urântia é messianista. O messianismo é um tipo de milenarismo. Milenarismo é a aposta de que um evento, seja a aparição de um messias, a ação de um ser celestial, uma revolução política, marcará uma transformação fundamental da sociedade e inaugurará uma era dourada. Nada disso existe no Livro de Urântia, é completamente falso. Existe o anúncio da vinda de mais seres celestias e profetas, mas eles não farão uma transformação imediata e profunda na sociedade. Aliás, diz o Livro que transformação desse tipo quem desejou fazer foi o lado de lá, o trio Lúcifer-Satanás-Caligástia.

8:30 Diz que existe uma disputa dentro do movimento de Urântia para saber quem ou que grupo estaria autorizado a receber novas revelações. Não conheço estudioso do livro que acredite numa continuidade da revelação urantiana. Deve existir, porém.

10:00 No fim, comparações com vídeos toscos sobre ETs. É criar um espantalho e fazer troça dele. Tal como faziam com Jesus, ou Maomé, chamando-os de falsos profetas ou feiticeiros. Pode ser que o Livro de Urântia seja uma fraude, mas fazer gracejo com ETs não vai te ajudar a descobrir.


segunda-feira, outubro 18, 2021

Idos de março, parte 1

O mestre do colégio dos áugures para Caius Julius Caesar, pontífice supremo e ditador do povo romano.
(Cópias para o sacerdote de Júpiter Capitolino, à madame presidente do colégio das vestais virgens etc. etc.)
Primeiro de setembro de 45 AC.
Ao reverendíssimo supremo pontífice:
Sexto relatório do dia.
Leituras do sacrifício da tarde:
Um ganso: nódoas no coração e fígado. Hérnia do diafragma.
Segundo ganso e um galo: Nada a observar.
Um pombo: Condição péssima, rim fora do lugar, fígado inflado e de coloração amarelada. Pigmentos rosas no papo. Ordenou-se averiguar mais detalhes.
Segundo pombo: Nada a observar.
Vôos observados: uma águia cinco quilômetros ao norte do monte Soracte até o limite da visão sobre Tivoli. A ave demonstrou incerteza de direção em sua aproximação da cidade. Trovão: nenhum trovão foi ouvido desde aquele último relatório de doze dias atrás.
Saúde e vida longa ao supremo pontífice.
I-A Anotação confidencial de César a seu secretariado eclesiástico.
Item I. Informe o mestre do colégio que não é necessário me enviar dez a quinze relatórios por dia. Um relatório-síntese único das observações do dia precedente é o bastante.
Item II. Selecione dos relatórios dos quatro últimos dias três auspícios favoráveis e três desfavoráveis. Pode ser que eu precise deles no Senado hoje.
Item III. Elaborem e distribuam uma notificação com o seguinte teor:

Tendo sido estabelecido o novo calendário, a comemoração da fundação da cidade no dia 17 de cada mês será elevada agora a rito da mais alta importância cívica.

O supremo pontífice, caso se encontre na cidade, estará presente em cada ocasião.

Todo o ritual será observado com as seguintes adições e correções:

Duzentos soldados deverão estar presentes e invocarão a Marte tal como é costume nos postos militares.

A adoração a Réia será prestada pela vestais virgens. A presidente do colégio ficará responsável pessoalmente por esta cerimônia, pela excelência da apresentação e pelo decoro das participantes.

Os abusos que se insinuaram no ritual serão corrigidos de imediato; esses celebrantes ficarão invisíveis até o fim da procissão e não se recorrerá ao modo mixolídio.

O testamento de Rômulo será dirigido aos assentos reservados à nobreza.

Os sacerdotes em diálogo com o supremo pontífice falarão a língua castiça. Sacerdotes que falhem em qualquer ponto terão trinta dias de treinamento e serão enviados para servir nos novos templos na África e na Bretanha.

I-B Carta de Caesar a Lucius Mamilius Turrinus na ilha de Capri.
968. [Sobre ritos religiosos]
Estou anexando no pacote da semana meia dúzia dos inúmeros relatórios os quais, como pontífice supremo, recebo dos áugures, adivinhos, observadores dos céus e avicultores.

Anexo também as diretrizes que fixei para a comemoração mensal da fundação da cidade.

O que deve ser feito?

Eu herdei esse fardo de superstição e nonsense. Governo inúmeros homens, mas devo reconhecer que sou governado por aves e trovões.

Tudo isso obstrui, com freqüência, a operação do Estado; fecha as portas do Senado e das cortes por dias e semanas a cada vez. Emprega milhares de pessoas. Quem quer que tenha algo com isso, incluindo o pontífice supremo, manipula a coisa para seu próprio benefício.

Uma tarde, no vale do Reno, os áugures locais me proibiram de dar batalha ao inimigo. Parece que nossas galinhas sagradas estavam comendo cheias de melindres. As madames galináceas estavam cruzando as patas enquanto andavam; estavam inspecionando os céus com freqüência e muito inquietas, certamente por um bom motivo. Eu mesmo, quando entrei no vale, fiquei desalentado ao observar que era o antro das águias. Nós, generais, somos reduzidos a ver o céu com o olhar de uma galinha. Eu acedi por um dia, embora na minha capacidade de surpreender o inimigo está uma de minhas poucas vantagens, e temi que estaria igualmente impedido pela manhã. Aquela noitinha, porém, Asinius Pollio e eu fomos caminhar pelos bosques; pegamos uma dúzia de larvas; então as misturamos em bolos com nossa facas e as distribuímos pelo curral sagrado. Na manhã seguinte todo o exército aguardava em suspense para ouvir a vontade dos deuses. As fatídicas aves foram levadas a comer. Primeiro, elas inspecionaram os céus emitindo aquele chilro de alarme que é suficiente para deter dez mil homens; mas então viraram-se para a comida. Por Hércules, seus olhos sobressaltaram-se; deram gritos arrebatados de gula; voaram para seu repasto e eu fui autorizado a vencer a batalha de Colônia.
Acima de tudo, porém, esses ritos atacam e minam o próprio espírito nas mentes dos homens. Eles proporcionam aos nossos romanos, dos varredores de ruas ao cônsules, um vago senso de confiança onde não há confiança alguma e, ao mesmo tempo, um medo impregnante, um medo que nem incita à ação nem inspira a inventividade, mas que paralisa. Eles removem dos ombros dos homens a obrigação contínua de criar, momento a momento, a sua própria Roma. Eles chegam até nós sancionados pelo uso de nossos ancestrais e exalando a segurança de nossa infância; bajulam a passividade e consolam a deficiência.
Eu posso com os demais inimigos da ordem: a arruaça desregrada e violência de Clodius; os murmuradores descontentes da laia de Cícero e Brutus, nascidos da inveja e alimentados pelas teorias sutis de velhos textos gregos; os crimes e a ganância de meus procônsules e indicados; mas o que eu posso contra a apatia satisfeita de se vestir com o manto da piedade, que me diz que Roma será salva por deuses que a tudo supervisionam ou que se resigna ao fato de que Roma conhecerá a ruína porque os deuses são malfazejos?
Não sou dado a reflexões, mas me vejo pensando nesse assunto com freqüência.
O que fazer?
Às vezes, à meia-noite, tento imaginar o que aconteceria se eu abolisse tudo isso; se, na qualidade de ditador e supremo pontífice, eu abolisse todos os ritos dos dias de sorte e de azar, de entranhas e vôos dos pássaros, de trovôes e raios; se fechasse todos os templos, com exceção do de Júpiter Capitolino.
E Júpiter?
Você vai saber mais a respeito.
Prepare seus pensamentos para meus conselhos.

A noite que vem.

[A carta continua em grego]
É meia-noite de novo, meu caro amigo. Estou sentado ao lado da janela, desejando que ela pairasse sobre a cidade adormecida e não sobre os jardins trasteverinos dos ricos. Os ácaros dançam pela minha lamparina. O rio mal reflete a luz difusa das estrelas. Na outra margem, alguns cidadãos bêbados estão discutindo numa taberna e, de quando em quando, meu nome chega-me aos ouvidos. Deixei minha esposa dormindo e tentei acalmar meus pensamentos lendo Lucrécio.
A cada dia sinto mais pressão sobre mim, pressão que vem da posição que ocupo. Estou mais e mais consciente do que me possibilita conquistar, do que me impele a conquistar.
Mas o que ela está me dizendo? O que requer de mim?
Pacifiquei o mundo; estendi os benefícios da lei romana a homens e mulheres inumeráveis; contra uma oposição grande, estou estendendo a eles os direitos de cidadania também. Reformei o calendário e nosso dias são regulados por um acerto útil dos movimentos do sol e da lua. Estou providenciando que o mundo seja alimentado de maneira equitativa; minhas leis e minhas esquadras vão ajustar a intermitência das colheitas e dos excedentes à necessidade pública. Mês que vem a tortura será removida do código criminal.
Mas isso não é o bastante. Essas medidas são apenas a obra de um general e de um administrador. Com elas, sou, para o mundo, o mesmo que um prefeito é para uma cidade. Agora outra obra deve ser realizada, mas o quê? Sinto como se agora, e apenas agora, estou pronto para começar. A canção na boca de todos me chama: pai.

Pela primeira vez na minha vida pública estou inseguro. Minhas ações têm, até o momento, se conformado a um princípio que poderia chamar de superstição: eu não faço experimentos. Não inicio uma ação para ser instruído pelos seus resultados. Na arte da guerra e nas operações políticas eu nada faço sem uma intenção particularmente precisa. Se um obstáculo aparece, imediatamente eu elaboro um plano novo, e cada potencial conseqüência me é clara. Do momento em que vi que Pompeu relegou uma pequena porção de cada empreendimento ao acaso, eu sabia que seria o senhor do mundo.

Os projetos que agora batem à minha porta, no entanto, envolvem elementos de que não estou certo de estar certo. Para realizá-los devo ter claro na minha mente quais são os objetivos de vida do homem médio e quais são as capacidades do ser humano.

Homem – o que é isto? O que sabemos dele? Seus deuses, liberdade, mente, amor, destino, morte – o que significam? Você há de se lembrar de como eu e você, quando jovens em Atenas, e ainda depois, em frente a nossas tendas na Gália, discutíamos esses assuntos noite adentro. Sou um adolescente de novo, filosofando. Como Platão, o perigoso sedutor, disse: "os melhores filósofos do mundo são garotos que acabam de crescer uma barbicha"; pois, sou um garoto novamente.
Mas veja o que fiz neste intervalo relativo a essa questão de religião estatal. Eu lhe dei força quando reestabeleci a comemoração mensal da fundação da cidade.
Eu o fiz, talvez, para explorar em mim mesmo quaisquer vestígios finais dessa piedade que ainda posso entrever ali. Lisonjeia-me também saber que sou, dentre todos os romanos, o maior erudito nas tradições religiosas antigas, tal como minha mãe foi antes de mim. Confesso que, enquanto declamo as toscas orações e movimentos no ritual complicado, sou tomado de uma emoção real; mas a emoção não tem nada a ver com o mundo sobrenatural: lembro-me de mim mesmo quando, aos dezenove anos, na qualidade de sacerdote de Júpiter, ascendi o Capitólio com minha Cornelia ao lado, o nascituro Julia sob seu espartilho. Que momento a vida me ofereceu igual àquele?
Silêncio! Acabou de haver a troca de guarda em minha porta. Os sentinelas ressoaram suas espadas e trocaram senhas. A senha para esta noite é CAESAR VIGIA.

domingo, setembro 26, 2021

Os números são percebidos pelo fenômeno da repetição.

Sem a repetição, sem a percepção da identidade de duas coisas, que, enquanto tais, formam um grupo, tudo seria um. E o próprio um só pode ser percebido pelo seu desdobrar na multiplicidade.

Na multiplicidade, o um é percebido como o grupo mesmo dos múltiplos, que, sem isso, não poderiam ser contados. Também pode ser percebido como o aspecto idêntico que permite a contagem dos distintos.

quinta-feira, agosto 20, 2020

A unidade do Cristianismo

 O Livro de Urântia prega a unidade do cristianismo, mas rejeita sua uniformidade. A tentativa de uniformidade foi o que causou sua divisão. Seria um sinal verde para o liberou geral, cada um acredita na sua versão do que Jesus significou, seja o Filho de Deus; um “Jesus histórico”, como se o Jesus que pregou a boa-nova, fez milagres, ressuscitou, não tivesse acontecido historicamente; uma figura espiritual especial, tal como Buda; um profeta, mas nada mais, etc? Não, não é isso. Se fosse, o LU não faria a menção, raríssima a uma figura depois de Cristo, a Santo Atanásio, que "levantou-se corajosamente para desafiar a assembléia, e tão destemidamente o fez que o concílio não ousou obscurecer o conceito da natureza de Jesus; pois a verdade mesma da auto-outorga havia estado em perigo de ser perdida para o mundo".

Então, a unidade do cristianismo não se daria ao preço de obscurecer a natureza e a verdade de Jesus e sua missão.

Os protestantismos que surgiram no século XVI não arriscariam, entretanto, essa verdade. Talvez o principal ponto de discordância entre católicos e protestantes seja o da natureza da Eucaristia. Neste ponto, porém, o LU é bem liberal. Ele diz que o sacramento da Eucaristia foi, ao longo do tempo, matematizado numa fórmula e perdeu seu significado simbólico-real original. “Essa ceia da lembrança”, diz o LU, “quando compartilhada por aqueles que são crentes dos Filhos e conhecedores de Deus, não precisa ter quaisquer das interpretações malfeitas e pueris dos homens ligadas ao seu simbolismo, a respeito do significado da divina presença, pois em todas essas ocasiões o Mestre está presente realmente”.

Cabe então distinguir o que são as verdades cuja negação comprometeria a natureza de Jesus e sua missão e o que são interpretações que não só não comprometeriam, mas enriqueceriam a simbologia de sua presença.

sábado, fevereiro 22, 2020

Uma nova idade média na Europa?

A Europa pode estar carcomida de tal maneira que mesmo o influxo da religião de Jesus, essa apresentada pelo Livro de Urântia, em contraste com a religião sobre Jesus, como o livro chama o cristianismo, não dê conta de, renovando-a, salvá-la.

Aconteceria então o mesmo que se passou com o império romano, o qual, decadente, o cristianismo não pôde salvar.

Uma nova idade média na Europa?

Claro, em termos de política, comparar com o Brasil é sacanagem. A Alemanha tem mais de 90% de solução de homicídios.

Só que, espiritualmente, e por incrível que pareça, o Brasil deve ser mais promissor. Não temos religiões estatais.

Há igrejas na Suécia, por exemplo, cujos pastores são empregados do governo. São religiões estatais. Um legado ruim da reforma, e não que a Igreja Católica fosse muito melhor; a esse ponto, porém, não chegou. Tem casos de pastores que simplesmente se declaram ateus, e continuam lá, regiamente assalariados, com a igreja vazia.

O livre exame da fé só aconteceu mesmo nos EUA, depois que as guerras religiosas ceifaram a Europa, a Alemanha, em especial. Porque nas colônias americanas o governo era fraco, porque os religiosos já chegavam escapando de perseguição, e talvez não quisessem eles próprios perseguir, porque o eventualmente perseguido, ou descontente, podia pegar as malas e ir para o oeste, e por causa dos ideais maçônicos de tolerância. Nos EUA, a maçonaria evitou guerras de religião sem matar, como na França, a religião mesma. Embora católicos fossem mal vistos.

Tolerância religiosa e despersonalização de Deus

A tolerância religiosa é boa, claro. Mas volta e meia ela despersonaliza e esvazia Deus. Isso não é bom.

Porque a tolerância acaba fazendo um mínimo comum, e Deus é o máximo, ele é ainda maior do que a maior coisa em que você consegue pensar, como dizia Santo Anselmo. Só que isso já é um pouco de filosofia, na realidade a conversa de Santo Anselmo com Deus.

Deus é reduzido a uma noção filosófica, o criador, a razão, o grande arquiteto, ou a um de seus atributos, como o Poder etc, e se perde a noção máxima de sua personalidade, com quem podemos nos relacionar, conversar, brigar etc.

Isso para não ofender, para esvaziar as emoções, as quais podem, sim, descambar em guerrinhas religiosas, mas também são um componente da fé em Deus Pai; mais o pensamento que a emoção, mas tá no meio.

Na relação com o Islam a coisa ainda se complica, e fica mais interessante, por outro lado, porque para o muçulmano a noção de Deus pai é errada, se não absurda. Até Deus como pessoa tem muçulmano que aceita, tem muçulmano que não, ele é apenas a divindade única, não é pessoa, para esse.

Por outro lado, a tolerância é essencial a quem acredita em livre-arbítrio. A pessoa tem que acreditar, ou não acreditar, ou acreditar nisto e não naquilo, por seu livre e espontâneo pensamento. Não ser forçada.