terça-feira, setembro 28, 2010

A língua que não conversa

"(...) é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte; seria acreditar que é possível começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário, cumpre partir da totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que encerra." (Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 132)

Fosse assim, um bebê e até mesmo um adulto não conseguiriam expressar um significado qualquer, porque teriam que conhecer todas as palavras da língua para poder expressar, com uma delas, sabendo de sua diferença face às demais, um significado para seu semelhante. Que trabalheira, não?

Mas o homem, porém, não cria a linguagem apenas para transmitir um significado, ele a cria para revelar-se a si próprio ao outro, esperando reciprocidade, num processo de descoberta mútua. O homem conversa com o Ser que não poderia não ser e se relaciona com Ele, e o ouve, e também fala sozinho -- "Quien habla solo espera hablar con Dios un día" (Antonio Machado) --; mal se pode dizer que um transmite ao outro algum significado conceitual. Trata-se de troca de valores e experiências, como não? O homem também cria a linguagem para erigir as instituições que fundarão sua vida social. Por isso é boba a alegação de que a língua de Virgílio e Cícero não era o verdadeiro latim, uma vez que a população em geral não se expressava com o refinamento dos dois. O latim que condenou Catilina e concebeu a aventura de Enéas formava o imaginário popular e edificava o governo de todos os romanos. Estudamos esse latim, não o que o mesquinho Zé da esquina falou. Aquele é o que pode tentar ser o mais verdadeiro e fiel possível às emoções e necessidades de um povo e de qualquer homem em sua experiência real no mundo, esse é a pululação quotidiana de nossos fingimentos e desejos baixos, falso acerto de contas com um cosmos que nos aterroriza.

Saussure analisa a linguagem em seu nível lógico antes que no da impressão ou experiência real que o homem deseja compartilhar e trocar com seu semelhante. Tem-se a impressão de que Saussure analisa conceitos tecnológicos conhecidos por uma comunidade restrita de cientistas ou técnicos. Ele, no entanto, não era tonto para crer que as palavras não terão qualquer referência a um mundo real, o que equivaleria dizer que a linguagem seria um dicionário sem mundo exterior1, um sistema de palavras que se remeteriam umas às outras sem referência a um elemento externo, o qual, na carona de Gödel, e por analogia, diríamos ser auto-contraditório.

Indicar o significado de algo já realizado, ao invés do apelo, do chamado à realização ou à compreensão e ao reconhecimento de algo na vida criativa interior é uma das críticas de Rosenstock tanto à teoria naturalista-representativista quanto à estruturalista de Saussure e quejandos.

O pai que ampara seu bebê pelos braços incentivando-o a andar, o chefe que manda seu empregado buscar papéis, ou o estudioso da língua que diz "Eu te amo" à sua esposa não estão apenas transmitindo significados, estão encorajando, dando ordens, trocando experiências com a pessoa a quem se dirigem -- e que lhes presta mais ou menos atenção --, conforme a situação. Muitas vezes, aliás, troca-se uma experiência melhor pelo silêncio do que por palavras -- "Espera que cada um se realize e consume / com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio" (Drummond). Por isto, os limites da linguagem não são os limites da interação com o cosmos, como queria Wittgenstein. O contrário seria mais justo. O homem intenta através da linguagem -- uma de suas melhores maneiras de fazê-lo --, dizer sua interação com o cosmos, 'no matter how short of it he may be'. As palavras são, ou deveriam ser, nossa tentativa de melhor nos fazer entender -- e também de entender --, de relacionar-nos em suma, com o semelhante, o Superior e até com o inferior -- você nunca conversou com um cão? Quando sei que Viktor Frankl conversava com sua esposa já falecida, a linguística saussuriana parece-me surda à experiência real do homem no amor do Cosmos.

......

1 Quando falo em exterior não me refiro apenas a coisas do mundo material, refiro-me também aos sentimentos, como tal interiores, do homem, às instituições que criou, etc, trata-se de um mundo exterior apenas ao dicionário, não à mente-alma-espírito humana.

sábado, setembro 25, 2010

O sonho da borboleta


"Certa vez eu, Chuang Chou, sonhei que era uma borboleta, adejando daqui para acolá, com todos os fins e propósitos de uma borboleta. Só tinha consciência de minha felicidade como borboleta sem saber que eu era Chou. Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei se eu era um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser um homem. Entre um homem e uma borboleta há, naturalmente, uma distinção. A transição é chamada transformação de coisas materiais." (Zhuangzi)

A distinção é que o homem desperto pode pensar que é borboleta, mas a borboleta do sonho não pensaria que seja homem.

quinta-feira, setembro 23, 2010

A psicologia transpessoal de Wilber e o Livro de Urântia

Ken Wilber, é preciso esclarecer tua idéia de que o destino da alma é ceder lugar ao Espírito, quando "na onipresente consciência, tua alma expande-se para alcançar o Cosmos inteiro, de sorte que o Espírito permanece sozinho, como o mundo simples daquilo que é." (Wilber, Ken. Integral Psychology. Boston & London: Shambala, 2000, p. 108, tradução minha) Desejas dizer que, "conforme Moisés, a alma pode lobrigar, mas jamais realmente ingressar na Terra Prometida", que a alma deve transformar-se no Espírito para fazê-lo? A alma é a realidade da relação única entre a mente e o espírito e "resulta em um valor universal, de duração eterna, inteiramente original, novo e único." (Livro de Urântia, 2007, doc. 111, p. 1218) Ken Wilber tratará da alma quando trabalha os níveis do desenvolvimento interno do homem:

"Da mesma maneira, olhando com profundidade para dentro da mente, na parte mais interior do eu, quando a mente fica bastante, bastante tranqüila, e, naquele infinito Silêncio, se ouve calmamente, a alma começa a sussurrar, e sua voz de pluma leva a um ponto a mais do que a mente jamais poderia imaginar, além de qualquer coisa que a racionalidade poderia tolerar, além de qualquer coisa que a lógica suportaria. Em seus sussurros gentis, estão as míseras pistas do amor infinito, lampejos de uma vida que o tempo esqueceu, coriscos de felicidade que não se mencione, uma interseção infinita onde os mistérios da eternidade sopram vida no tempo mortal, onde o sofrimento e a dor esqueceram como pronunciar seus próprios nomes, a interseção calma e secreta do tempo com o próprio atemporal, uma interseção chamada alma." (Wilber, idem, p. 106, tradução minha)

Uma descrição belíssima.

No Livro de Urântia, o Espírito mencionado por Wilber equivale ao Ajustador do Pensamento, um fragmento do Pai Eterno nas mentes de Seus filhos mortais planetários, Seu amor "tornado realidade e encarnado nas almas dos homens." (Livro de Urântia, idem, doc. 107, p. 1176) O destino do homem que haja escolhido com firmeza cumprir a vontade do Pai ao longo de uma carreira eterna é fusionar-se com Ele. Dir-se-á então que o homem se torna Ajustador, ou que o Ajustador se torna homem? "Nenhuma das duas coisas", "as duas identidades transformaram-se numa única." (Livro de Urântia, idem, doc. 112, p. 1238) Cada homem, lembremos a Wilber, deve ter seu Ajustador de Pensamento, ele não é um espírito comum aos homens em geral. Viktor Frankl, sem o saber, referir-se-ia a Ele ao dizer que "quando você estiver conversando consigo com plena sinceridade e suprema solidão -- este a quem você se dirige pode ser adequadamente chamado de Deus." As diferenças com Ken Wilber podem ser detalhes técnicos de nomenclatura, ao invés de uma discordância fundamental, mas a alma humana terá se tornado imortal pela aceitação sem reservas dos desejos do Espírito, ou seja, do Pai.

Ken Wilber considera também o caráter pessoal do homem em cada nível do "Great Nest of Being" que lhe acontece viver:

"Mas dizer que as mais profundas ondas do eu estão arqueologicamente expostas não significa em absoluto dizer que elas estão simplesmente dadas de antemão, como um tesouro enterrado no peito e à espera de excavação. Apenas significa que essas ondas mais profundas são todas potenciais básicos da condição humana (e sentiente). (...) cada indivíduo descobre as profundezas criando as características de superfície de cada onda que será unicamente sua (o que você faz com seu corpo, mente, alma e espírito cabe a você trabalhar). Como sempre, devemos construir o futuro que nos é dado; e o terapeuta que trabalha por todo o espectro ("full-spectrum therapist") é um assistente nesta extraordinária viagem ao mesmo tempo de descoberta e de criação." (Wilber, idem, pp. 109-110, tradução minha)

Sobre o tema, o Livro de Urântia dirá que a personalidade "unifica todas as atividades e que, por sua vez, lhes confere as qualidades de identidade e de criatividade." (Livro de Urântia, idem, doc. 112, p. 1227) "O propósito da evolução cósmica é conseguir a unidade de personalidade, por meio da predominância crescente do espírito, que é a resposta da vontade ao ensinamento e ao guiamento do Ajustador do Pensamento." (Livro de Urântia, idem, doc. 112, p. 1229) A personalidade, portanto, efetiva o caráter único do desenvolvimento de cada homem.
Atualização de 30 de janeiro de 2011: Veja também, leitor, uma comparação entre a obra de Viktor Frankl e o Livro de Urântia, aqui, realizada por Luiz Carlos Dolabella Chagas, tradutor para nosso idioma do Livro de Urântia. Advirta-se que o texto está em inglês.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Direita

Urge a formação de um partido de direita no Brasil, mesmo que esse partido nasça dentro de um partido já existente. Por exemplo, o Democratas, agora com Indio da Costa corajosamente denunciando a aliança entre o PT e as Farc, poderia ser esse partido. Há, porém, dois empecilhos, os próprios Democratas não querem ser qualificados como direitistas (Indio da Costa, em entrevista a Veja, disse que se deve procurar a eficiente terceira via de Anthony Giddens, ao invés de se ocupar com definições partidárias), e o cacife do partido, Cesar Maia, é um comunista enrustido -- ele usou um broche comunista em seu último dia de governo como prefeito do Rio de Janeiro, como homenagem a seus ideais de outrora. Não vejo qualquer problema na pessoa ser fiel a seus ideais de juventude, como queria Schiller, mas deve sê-lo na medida em que eles apontam para os valores supremos, ainda que com idéias ruins, como o são as comunistas, as quais devem ser abandonadas. Permaneça o bom ideal e as idéias se aprimorem pela experiência. Cesar Maia provavelmente confundiu ambos.

Um partido de direita deve articular as seguintes políticas:

Defesa intransigente da democracia liberal. Não se admite que a direita, às vezes até covardemente, abandone o jogo da democracia para implorar a ação dos quartéis. Se é função das Forças Armadas assegurar pela força a ordem contra movimentos nazi-comunistas, não é preciso que elas sejam governo para tanto porém.

Apoio internacional a países e partidos defensores da democracia liberal, inclusive a participação em foros internacionais de debate. A UnoAmérica poderia ser o embrião de uma organização do tipo. A direita se perde em dois extremos, o liberalismo e o nacionalismo, políticas que muitas vezes são antagônicas. O liberalismo prima pela universalidade, ao passo que o nacionalismo apela ao singular, um coletivo singular, a nação. Sem 'ismos', respeitem-se as lealdades formadas dentro da nação, porém abra-se a possibilidade para novas lealdades no nível internacional. A direita deve atuar com decisão, prudência e confiança em governos transnacionais.

Redução de tributos e apoio à iniciativa empresarial. O desenvolvimento de novas tecnologias e projetos produtivos é tornado possível pela acumulação de capital -- outro nome para poupança -- de indivíduos e grupos de indivíduos. "O abuso do capital, da parte de alguns capitalistas injustos, não contradiz o fato de o capital ser a base da sociedade industrial moderna. Por meio do capital e das invenções, a geração atual desfruta de um nível mais elevado de liberdade do que qualquer outra que a haja precedido na Terra." (Livro de Urântia, 2007, doc. 69, p. 777)

Defesa dos valores tradicionais, sobretudo na medida em que comunguem dos valores supremos. "Os costumes têm sido o fio de continuidade a manter a civilização unida." (Livro de Urântia, 2007, doc. 68, p. 767) Peter Drucker dizia que o progresso deve ser acompanhado da continuidade. "(...) Nenhuma civilização que haja abandonado as suas tradições sobreviveu, a não ser adotando costumes melhores e mais adequados." (Livro de Urântia, doc. 68, p. 767) Um partido de direita deve gostar do bom, seja novo ou velho. Se for novo, ótimo, se for velho, tão logo o novo seja testado e estimado como inferior na comparação, prevaleça o velho.

Apoio ao agronegócio, responsável direito ou indireto pelo emprego de 35% da população do país e, atenção, pelo preço baixíssimo dos produtos primários no mercado brasileiro. No Brasil a carne custa R$10,00 o quilo. O modelo de pequenas propriedades rurais tem se revelado um fracasso, com raras exceções no sul do país, onde uma população de origem européia, com cultura camponesa e organizada em modernas cooperativas, consegue boa produção. Mais do que de capital, o pequeno agricultor precisa de assistência técnica.

Educação compulsória, seja organizada pelo Estado, paga pelo Estado porém escolhida pelos pais, ou paga e escolhida pelos pais.

Promoção da justiça social, o que se reflete, por exemplo, no reconhecimento da função social da propriedade, de resto já consagrado em nosso ordenamento jurídico, e no cuidado pelos desventurados. Não é errado querer promovê-la. O conceito não foi criado por socialistas, mas por um jesuíta no século XIX.1 "É assunto e dever da sociedade prover, ao filho da natureza, uma oportunidade justa e pacífica de buscar a automanutenção, de participar da autoperpetuação e, ao mesmo tempo, de desfrutar, em alguma medida, da autogratificação; e a soma de todas essas três constitui a felicidade humana." (Livro de Urântia, 2007, doc. 70, p. 794)

Trabalho forte de base. Os partidos brasileiros costumam ser dominados por políticos medalhões. Muito cacique para pouco índio. Um partido de direita deve realizar primárias para escolher seus candidatos.

1 E se relaciona à idéia aristotélica de justiça distributiva. Ver Shields, Leo. History and Meaning of a Social Justice, dissertação para obtenção do grau de doutor em filosofia. Notre Dame, Indiana: 1941.

sábado, setembro 18, 2010

Não se conserve o pensamento politicamente correto

Entrevistando Bruno Mazzeo no programa Globo News em Pauta, o jornalista Sergio Aguiar lhe perguntou como o pensamento politicamente correto atrapalhava o humor e se não se trataria de um conservadorismo.

Não, Sergio Aguiar, o pensamento politicamente correto surge no bojo do marxismo cultural dos anos 20, quando Antonio Gramsci, Georg Lukács e a Escola de Frankfurt advogam que a superestrutura da civilização ocidental é o obstáculo ao êxito da ideologia. Alcançará o auge e a partir de então uma hegemonia relativa nos anos 60, como a teoria da contra-cultura.

O conservadorismo se opõe ao pensamento politicamente correto, o qual freqüentemente o taxa, bem a seu feitio, de "hate speech" (discurso de ódio).

Está na hora de parar de considerar qualquer tema que desagrade como conservador.