quinta-feira, maio 24, 2007

Três gerações

por João Nemo

em 21 de novembro de 2005
MidiaSemMascara.org

Nada como enterros e casamentos para uma rápida atualização sobre o andamento da vida de familiares distantes e amigos antigos. Felizmente, o último evento desse tipo a que compareci foi o belo e festivo casamento do filho de um querido amigo de juventude. Não há muitos ultimamente. Com exceção dos homossexuais militantes, empenhados em casar segundo tanto se fala, a geração que deveria estar embarcando nessa, parece ter certa dificuldade em assumir compromissos e vai, numa opção racional, exercitando relacionamentos com horário marcado e otimizando seus próprios orçamentos mantendo-se na casa dos pais. Mas, por algum fenômeno astrológico, vez ou outra há um surto de matrimônios.
O fato é que um largo círculo de amigos da minha adolescência nos “anos incríveis” encontrou-se para comemorar o arrojo anacrônico desse jovem que, depois de um longo período vivendo com a sua eleita no exterior, resolveu brindar a mãe pátria e a CNBB com a fundação de mais uma família brasileira.
Como o cachimbo faz a boca torta, não pude evitar algumas meditações sociológicas sobre o grupo ali reunido e estender um pouco a visão do cenário para abarcar a geração que nos precedeu e que ainda tinha alguns escassos representantes ao vivo e a cores no local. O que no passado me teria parecido apenas normal, porque era o meio em que fui criado, saltou aos meus olhos com muita clareza. Quase todos nós, senão todos, tínhamos uma história de vida assemelhada sob vários aspectos. Nossos pais, na maioria dos casos, eram gente simples e de pouco estudo, alguns mesmo levemente alfabetizados. De profissão, pequenos comerciantes, funcionários, trabalhadores de ofícios diversos. Alguns eram migrantes, em especial portugueses, como meus pais, mas também italianos, espanhóis, japoneses, etc. Vários de nós fomos alunos de escolas públicas o que, naquele tempo, podia significar algum estabelecimento mais exigente do que boa parte dos particulares. Da geração dos nossos pais para a nossa, o grande diferencial foi o nível de estudo e a conseqüência foi uma razoável ascensão social. O filho do mestre de obras tornou-se empresário de sucesso; o do pequeno comerciante chegou a diretor de banco; a costureira viu o seu tornar-se médico e assim por diante. Girando os olhos pelo salão eu me atreveria a dizer que dali se poderia extrair um ministério bem melhor que o do atual governo, mas não sei se isso é lá muita vantagem.
Na geração que nos antecedeu predominava a escolaridade básica, o trabalho árduo, mas não o intelectual. Meu pai fez serviço de rua para um escritório de administração até os 82 anos de idade. Nós, os filhos, começamos a encontrar os primeiros empregos por volta dos 14 anos, muitas vezes ajudando os pais em alguma coisa antes disso. Muitos passamos pelo ritual de sermos primeiro “office-boys” e depois auxiliares de escritório. A longa amizade que tive com meu primeiro patrão, um relojoeiro romeno fugido do paraíso comunista, com quem eu gostava de manter longos papos enquanto ele montava e desmontava relógios, é assunto para uma crônica específica, pois só agora, depois de tantos anos, eu aprendi que ele era, na verdade, um sórdido explorador do trabalho infantil, uma figura nociva e perversa que eu deveria ter processado e submetido às mais diversas extorsões em nome da sacrossanta lei tutelar que protege a nós outros, os coitadinhos.
Mas, o fato é que pude contemplar, nessa como em outras ocasiões, que na minha geração, entenda-se, no meu círculo de amizades antigas, predominam os tipos que nos “esteites” denominam “self made man”, mas, em grande parte, foram “made” mesmo pela associação de mérito próprio com o empenho de pais humildes e dedicados, cuja fé era que estudo e trabalho geravam oportunidades e construíam cidadãos bem sucedidos na vida. Pode-se dizer que é uma boa fórmula e que deu certo.
O que fizemos nós, então, além de termos casas e automóveis melhores, viajarmos mais e propiciarmos cirurgias plásticas às nossas esposas? Ora, continuamos acreditando na fórmula que deu certo: investimos pesadamente na educação dos filhos. Esta nova geração de jovens adultos, a terceira na minha breve “trilogia”, como diriam os cinéfilos, freqüentou as melhores escolas privadas, até porque as públicas foram destruídas nesse meio tempo. Teve, também, acesso a Clubes Esportivos, aprendeu outras línguas, ganhou computadores, fez intercâmbios no estrangeiro, formou-se nas Universidades de maior prestígio e quando trabalhou foi mais para adquirir “bagagem” do que por necessidade. Como gente que aprendeu, por experiência própria, o valor do estudo, do empenho e da qualificação profissional, tentamos transmitir esse método e torcemos para que os filhos nos superassem. Acho que, na maioria dos casos, fomos bem sucedidos. Minha filha, aquela que costuma bisbilhotar os meus textos, garante com um risinho irônico que, superar-nos, não é um desafio tão grande. Pretensão e água benta não fazem mal a ninguém, como diria minha mãe.
Mentalmente percorro, agora, numa última rodada, o que vem ocorrendo com esta terceira geração. O indicador máximo de sucesso, comentado com orgulho pelos pais numa conversa, é quando o filho ou a filha obteve uma colocação no estrangeiro. Como um boleiro que tivesse sido contratado pelo Barcelona, está atestada a qualidade do rebento, cuja capacidade e talento exigem um horizonte mais amplo do que oferece o espaço nacional. Quase todos, de alguma maneira, flertam, flertaram ou vincularam-se, definitivamente, a atividades no exterior. Nada contra. O que me incomoda é que não possamos, no Brasil, oferecer oportunidades equivalentes. Estamos, em muitos casos, exportando inteligência a preço vil. O país que um dia se deu ao luxo imbecil de proibir a contratação de professores universitários estrangeiros, evitando, assim, a importação líquida de neurônios, expulsa o produto nacional por incapacidade de utilizá-lo. Enquanto se entoam loas aos bons indicadores macroeconômicos (sic), comemoram-se crescimentos pífios ao lado de recordes sucessivos de arrecadação, o país mostra-se amesquinhado, sem oferta significativa de empregos qualificados, sem fé ou projeto. Os jovens saem das Universidades para disputar com unhas e dentes, através de performances teatrais denominadas de “dinâmica de grupo”, escassas vagas para privilegiados “treinee”. A grande meta de Estado proposta é ter várias refeições por dia o que, convenhamos, por desejável que seja, é muito rasteiro para figurar como objetivo nacional, principalmente pelos métodos utilizados. Na política externa, fazemos cara de nojo para países de ponta e saímos paparicando ditaduras miseráveis e outros potenciais adeptos para, quem sabe, formar um clube de ressentidos e fracassados.
O volume de jovens que busca encontrar lá fora o que parece esgotado aqui dentro é enorme. Nem todos vão porque as oportunidades sejam luminosas. Moças e rapazes bem formados, com curso superior e eventualmente poliglotas, arrumam artifícios para se instalar em diversos países como garçons, babás, auxiliares de alguma coisa e, quem sabe, descobrir um trajeto para uma vida melhor em algo parecido com o que estudaram. Até uma certa fase, vale a experiência e a aventura, mas, durante o referido reencontro, a filha de um amigo, preparando-se para retornar à Nova Zelândia, rebateu as esperanças dele com outra explicação, simples e direta, para a sua insistência em achar rumo fora daqui: “Pai, eu não vou passar a minha vida chamando a segurança para entrar e sair de casa”. Não pude deixar de reconhecer a força do argumento e, pior, a ironia do fato de que esse velho companheiro, graças a um talento muito acima do normal, atingiu a Vice-Presidência de uma grande empresa e, como corolário do seu sucesso, tem a família toda andando em carro blindado. Paranóia? Não, os fatos já comprovaram a necessidade. Não posso sair do rumo neste texto, mas fique claro que essa situação, segundo meu ponto de vista, é decorrência direta do tipo de elite que nos dirige. Não a misteriosa “zelite” do apedeuta, mas essa leniente, incapaz, retrógrada e hipócrita da qual ele faz parte.
Diferentemente dos jovens de países europeus, por exemplo, que se deslocam enquanto estudantes em busca, como eu já disse, de experiência e aventura, os nossos vão formados, sempre na expectativa de encontrar uma oportunidade fora. Este país, contrariando toda a lógica, a sua própria história e as expectativas típicas da minha geração, oferece uma porta estreita de oportunidades. Não são apenas migrantes de Governador Valadares que estão saindo. É boa parte da nata da nossa juventude e, mesmo quando retornam, freqüentemente o fazem como uma espécie de alternativa menor, aceita apenas porque o plano mais ambicioso não deu certo.
Não sei o que podemos esperar de um processo como esse. Os cérebros que não são destruídos por um ensino deplorável, que não são massacrados pela escola de oportunismo propagada pelos meios de comunicação e pelo exemplo que vem do alto, começam a ser exportados. Ainda é um fenômeno reversível, porque recente, mas poderá não sê-lo por muito tempo. Em boa linguagem sociológica eu diria que estamos sangrando capital humano. Como pai, eu diria que estamos, simplesmente, exportando o melhor fruto do nosso esforço.

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