sábado, janeiro 09, 2016

A diferenciação do mito em filosofia e técnicas de Jesus

XXII A Diferenciação do Mito em Filosofia


Pode ser que nem toda a fantasia do homem sobre o universo seja um fato, mas muito nela é verdadeiro (Doc. 196).

           
            “Early philosophical efforts translated the insights of the dissolving mythology into terms that go beyond the image, or at least reduce its distracting presence. Abstraction, logic, and mathematical philosophy would ultimately emerge from this difficult and epochal transition from concrete to abstract diction.” (MCEVILLEY, 2002, p. 28.)

            Alegorias são ilustrações de conceitos, de ideias.
Mito é uma história alegórico-simbólica que dá um quadro referencial explicativo a fenômenos cuja origem não se pode explicar plenamente. Ele seria a ciência das ciências, não fosse o fato de não ser científico. Não o é justamente porque extrapola relações materiais de causa e efeito para mostrar correlações, analogias. O mito, neste sentido, tem muito mais a ver com o processo de entendimento humano do que a ciência, uma forma de conhecimento não só lógica e abstrata, mas bastante específica, porque nem sempre estamos prestando atenção à causa eficiente dos acontecimentos. Sempre, porém, mesmo sem querermos, estamos esquadrinhando sua causa formal. É o que cientistas fazem quando imaginam um átomo depois de terem precisado características suas.
Alguns mitos podem ser criados a partir de uma experiência clara e distinta também. Quando Platão criou o mito da caverna, veja, não é um mito que se estabelece pela tradição oral, com uma variação aqui ou acolá, que está no imaginário coletivo como ciranda, cirandinha, e cuja origem mal se pode rastrear, é um mito com um propósito educativo evidente; nesse caso, ele é a representação de uma realidade cujo acesso é muito facilitado pela representação. São as madeixas que Rapunzel joga, ao contrário do pé-de-feijão que brota. O caminho a percorrer, porém, é o mesmo.
O Livro de Urântia no documento 151 nos dá pistas para entender a diferença entre uma parábola e uma alegoria. Esta tem uma “linguagem codificada”, como diz Rafael Falcón, que se deveria descodificar. Alegorizar uma parábola seria dar-lhe um sentido unívoco, enfiando nela mais do que seu sentido eminente sugeria, mais do que o aspecto que se quis enfatizar; seria individualizá-la segundo um entendimento específico, atendo-se a detalhes secundários. É próprio da parábola ser imaginada de maneira pessoal por cada pessoa. Ela tem muito em comum com o mito: trata-se de uma história que tende ao simbólico quanto mais capaz de provocar interpretações diferentes, interpretações que não estão erradas por serem diferentes[1], porque são adequações mentais a apelos moral-espirituais.
A alegoria expressa figuradamente o que já se sabe; o símbolo impressiona ao invés de exprimir, ele aponta ao que não se entende ainda, ao que não foi feito para se entender totalmente, porque não é função do símbolo apontar conceitos (por isto seu objeto não é definível), mas jogar luz sobre experiências e realidades significativas com suas nuances e tensões.
A fábula e a parábola são diferentes do mito porque encerram uma lição moral, o mito não necessariamente, não apenas. A parábola usa elementos humanos, enquanto a fábula, narrativa que consagra a prosopopéia, usa elementos fantásticos. Jesus não gostava de fábulas, porque nela é fácil perder o contato com a realidade, é fácil pirar na batatinha, além de poder prestar-se para que enfiem goela abaixo qualquer aspecto absurdo com truques imaginativos. Por isso, preferia parábolas naturalistas, que inspiram a sensatez, o pé no chão. A idéia, porém, é a mesma. Outra diferença é que o mito transita na imaginação humana entre a verdade histórica e a ficção, a fábula e a parábola não pretendem ser reconhecidas como verdade histórica.
Quando o mito do bom selvagem surgiu, algo de um sentimento de mal-estar pela correria da vida urbana e o gosto de vida arcádica havia, mesmo gosto que Jacinto (personagem de Eça de Queiroz em A cidade e as serras) sentiu ao mudar-se de Paris para a vilazinha portuguesa, de onde não quis mais sair, mesmo gosto que sentimos ao visitarmos o sítio da avó no interior.
Em evento sobre Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino disse que o cheiro de merda no campo é bom, na cidade não, mas no campo, merda de vaca, é bom[2]
O mito do bom selvagem apela a imagens de praias paradisíacas e de mata densa, ao contato com a natureza. Ele explica o mal-estar de uma civilização que teria decaído de seu estágio primitivo, o qual, se não era lá muito tecnológico, era mais feliz, menos brutal. Seu quadro de referência tangencia a valorização da experiência da vida tranqüila e sensitiva do campo.
Mais amplo que ele, o mito da natureza foi o tema das festas jacobinas em comemoração à queda da Bastilha no Champs-de-Mars. “Natureza” apelava tanto à noção de ordem superior, quanto à simplicidade arcadiana. De fato, o qualificativo "natural", em direito natural, ordem natural, liberdades naturais, já teve um grande apelo. Era o "social" da época, que também está passando. Foi um lema para a classe média liberal cheia de pretensões intelectuais e políticas que ascendeu com a revolução.
Eu posso, porém, apreciar uma vida idílica no campo e nem por isso achar que o homem primitivo é bom. Considerada a evolução espiritual de então, ele é tão bom quanto qualquer homem de hoje ou do futuro.
Peço licença para repetir uma citação do L. U.:
“Os intelectos parciais, incompletos e em evolução estariam desamparados no universo-mestre, seriam incapazes de formar o primeiro modelo de pensamento racional, não fosse pela capacidade inata de toda mente, mais elevada ou mais baixa, de formar um quadro do universo dentro do qual pensar. Se a mente não pode estabelecer conclusões, se não pode penetrar as verdadeiras origens, então essa mente irá, infalivelmente, postular conclusões e inventar origens para que possa ter um meio de pensar logicamente dentro da moldura desses postulados criados pela mente. E, conquanto essas molduras do universo para o pensamento da criatura sejam indispensáveis à operação intelectual racional, elas são, sem exceção, errôneas, num grau maior ou menor.
Os quadros conceituais para o universo são apenas relativamente verdadeiros; eles são um andaime útil que deve finalmente ceder o seu lugar diante das expansões de uma compreensão cósmica ampliada.”(LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 115, p. 1260)
Essa passagem por si só serviria para pensadores do século XIX que acreditavam no poder absoluto da razão colocarem as barbas de molho.[3] Nosso tema agora não é esse, porém.
O mito encerra uma verdade relativa. Ele deriva de uma experiência genuína, mas o quadro de referência que cria para colocar em evidência essa experiência é mais (ou menos) arbitrário.
Por isso os mitos podem ser aperfeiçoados, de modo que dêem um quadro mais exato da realidade, ou melhor, de modo que sua alegoria simbolize mais e mais a realidade a que se referem. Não vejo como alguém pode dizer se Tales estava filosofando ou criando um mito quando disse que a água era a origem de todas as coisas.
O mito grego da criação do mundo diz que do CAOS primordial diferenciou-se Géia, a qual “gerou a Urano (Céu), que a cobriu e deu nascimento aos deuses”. (BRANDÃO, 1986, p. 185)
“Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O que queres dizer com isso?” “Quanto à alma, sois todos novos – disse ele”. (PLATÃO, 2011, p. 83)
Platão, então, relata-lhes o mito pelo qual um demiurgo bom gerou nosso mundo, um ser dotado de inteligência, com a forma esférica – a mais perfeita, segundo Platão –, de modo a conter em si todas as formas possíveis. A partir do mundo o demiurgo extraiu os seres que o habitariam.
Platão pretendeu substituir a narração mitológica clássica da criação do mundo por um mito que ele considerava mais próximo do que efetivamente teria sido a ação criadora do mundo.
“Thus the first peoples, who were the children of human race, founded first the world of arts; then the philosophers, who came a long time afterwards, and so may be regarded as the old men of the nations, founded the world of the sciences, thereby making humanity complete.
This history of human ideas is strikingly confirmed by the history of philosophy itself. For the first kind of crude philosophy used by men was autopsia or the evidence of senses. It was later made use of by Epicurus, for he, as a philosopher of the senses, was satisfied with the mere exhibition of things to the evidence of the senses. And the senses of the first poetic nations were extremely lively, as we have seen in our accounts of the origins of poetry. Then came Aesop, or the moral philosophers whom we would call vulgar. (As we have noted above, Aesop preceded the seven sages of Greece.) Aesop taught by example and, since he lived in what was still the poetic age, he took his examples from fictitious similitudes. (The good Menenius Agrippa used one such to reduce the rebellious Roman plebs to obedience.) An example of this sort, or better still a true one, is even now more persuasive to the ignorant crowd than the most impeccable reasoning from maxims. After Aesop came Socrates, who introduced dialectic, employing induction of several certain things related to the doubtful thing in question. (VICO, 1948, p. 174)
Na infância da república americana, George Washington foi pintado como um herói curioso, incapaz de mentir, entre outras coisas. Um livro preferido de Abraham Lincoln era "The Life of George Washington, With Curious Anecdotes, Equally Honorable To Himself and Exemplary To His Young Countrymen", com histórias fantásticas sobre o founding father. Hoje, passada a infância americana, Washington é biografado com rigor histórico, o que não precisa, necessariamente, diminuir a afeição que se tem por ele. A filosofia não mata o mito, ela pode até exaltá-lo (“O filósofo é também amante do mito, pois o mito consiste em coisas admiráveis”, disse Aristóteles).
É interessante notar que no fato de serem explicações provisórias para a realidade mito e ciência são iguais. A abstração do mito em teorias verificáveis na experiência física não torna a realidade plenamente compreensível, mesmo uma realidade recortada.
“A insistência em novos testes vem do fato de nenhuma teoria ser perfeita, existindo sempre dentro de limites de validade. A própria teoria da relatividade explica coisas que a teoria de Newton não explica, como os três testes acima. A esperança é que, ao expor a teoria a testes cada vez mais sensíveis, será possível vislumbrar onde ela falha. Essas falhas, por sua vez, apontam para novas teorias, novas idéias sobre a natureza. É sempre bom lembrar que a ciência é uma narrativa que se aprimora constantemente”. (GLEISER, 2007)
Ciência são hipóteses explicativas de fenômenos naturais que os experimentos não têm desmentido.
Pode até acontecer de o mito conter uma verdade cuja cientificidade, antes rejeitada, virá depois a ser afirmada. É realmente risível, aliás, que cientistas queiram dar risinho e fazer pouco sobre a mitologia antiga quando acreditam que novos universos são criados a todo momento, confundindo probabilidade com atualidade dentro da mecânica quântica.
Exemplo de mito relegado à desconfiança que recuperou status científico: a existência da guerra de Tróia.
O Livro de Urântia confirma vários mitos e desbanca outros. Deus não mandou Abraão matar Isaac até interrompê-lo no último momento, mas Adão e Eva realmente existiram, embora não tenham sido os primeiros seres humanos; o diabo existe realmente; a mitologia dos heróis gregos não veio do nada, baseou-se em sua ascendência adamita e nodita[4]; Tor foi um líder militar bem sucedido antes de ser venerado como deus; a árvore do jardim do Éden, jardim que também existiu, não era a árvore do conhecimento do bem e do mal; e por aí vai.
O Livro de Urântia traz também o exemplo da história dos reis magos atraídos por estrelas como um mito criado por pessoas bem-intencionadas, mas sem fundamento, porém. Houve os sábios do Oriente, que vieram pagar visita à luz da vida nascida em Israel, e na mesma época houve uma conjunção astral incomum. Os eventos, porém, não estão conectados. Os sábios do Oriente foram avisados por um Serafim.
O filósofo Platão quis expulsar poetas de sua cidade ideal, mas ao mesmo tempo com freqüência citava como autoridade Homero e era, ele próprio, um criador por excelência de mitos. “Intimacies and reciprocal distrust made iconic by Plato” (George Steiner). Como se explica isso?
            A pinimba de Platão é antes uma acusação contra os imitadores baratos, macaqueadores, do que contra os poetas em geral. Queria ele a imitação poética da virtude, não do vício, a qual devia ser banida. Machado de Assis e Nelson Rodrigues (esse, então, nem se fala), dois escritores com uma acuidade psicológica de primeiríssima qualidade, que se dedicaram antes a analisar o vício do que a virtude, se contorcem agora; teriam que se desdobrar para conseguir seu lugar na República. Machado poderia dizer em seu favor o que, como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, escreveu em favor da peça As leoas pobres, citando seu próprio autor, Émile Augier:
            “Thérèse: Mas existem certas feridas sociais que seria mais sábio esconder.
Pommeau: Para que a gangrena se instale nelas? De jeito nenhum! Podemos expô-las à luz do dia, mas encostando nelas o ferro em brasa. A verdadeira finalidade da comédia não é a de encorajar o vício escondendo o seu segredo, mas o de enfraquecê-lo desmascarando-o.”[5]
            Mas Platão sugeriu também, motivo pelo qual é acusado de autoritarismo, que as obras poéticas devam passar por uma censura antes de serem lidas para as crianças e jovens. “Pois a criança não pode discernir o alegórico do literal, e as opiniões que acolhe nesta idade tornam-se, comumente, indeléveis e inabaláveis”. (PLATÃO, livro II) Bom, muita coisa ruim que chegou à minha mente quando jovem eu fui depurar com a filosofia, de Platão, por exemplo. Difícil de aceitar, Platão, é que se apaguem das obras poéticas passagens consideradas viciosas ou mentirosas, como as em que Homero relata disputas entre os deuses. Um professor pode muito bem selecionar as passagens virtuosas de uma obra literária que quer que seu aluno leia, afastando as viciosas, assim como um pai proíbe seu filho menor de assistir à novela das nove (deveria proibir a das sete também!). Pode também usá-la, o professor, numa turma mais madura[6], como ensejo para uma discussão sobre a natureza da Deidade. Será mesmo, perguntará socraticamente o professor, que:
““Dois tonéis se encontram à soleira de Zeus,
Um cheio de sortes felizes, e outro, infelizes,”
E aquele ao qual Zeus concede de ambas
“Ora experimenta do mal, ora do bem;”” (PLATÃO, 1965, p. 140)
Será mesmo que Deus trata assim aos homens? Ou será que quer o seu bem? Mas, se os ama e é bom, por que não impede o sofrimento humano? Etc., etc.
Como Deus permite o sofrimento humano, se é bom? Chama-se a esse problema teodicéia. Esboço aqui um tratamento da questão: A vontade de Deus não é unívoca, ela tem planos. Não é da vontade de Deus que alguém pratique o mal, muito menos o mal deliberado. Mas é da vontade dele que a pessoa possa escolher, possa decidir. A vontade dele fundamental é o livre-arbítrio das personalidades.
Por isso, quando alguém peca, isto é, quando deliberadamente dá uma volta em Deus; não é vontade sua que ela peque, isso seria contradição em termos, mas é vontade sua que ela possa pecar, e que peque realmente se assim escolher.
A vontade específica de Deus é o bem na situação concreta, mas ela não é decisiva, não sempre, ao menos, porque o livre-arbítrio não pode ser suprimido. Claro que Deus mexe pauzinhos para que a iniquidade não gere resultados devastadores, ou ele seria um Deus de Newton tricotando alheio à vida lá fora. Os resultados de iniquidades ele pode evitar e pode também promover o bem, é o que faz toda hora, mas não suprime as escolhas das criaturas de vontade.
Mas e as doenças, catástrofes naturais, que causam sofrimento? São elas fruto da vontade de personalidades também, sempre? Esse é um dos problemas mais difíceis que existem, a meu ver. Sei que os Portadores da Vida verão muitas excrescências biológicas, que não planejaram quando implantaram o plasma da vida no planeta, no decorrer da evolução; o acaso realmente existe na evolução das espécies, embora o plano diretor, apesar das linhas marginais, seja mantido. Sei também que depois que surge a criatura de vontade, o ser humano, como nos conhecemos em nosso planeta, passa a ser o responsável pelos ajustes biológicos eventuais. Fazemos isso selecionando animais, espécies de plantas. No longo prazo, faremos também com os micro-organismos que geram doenças. Eles não mais serão prejudiciais.
Enquanto isso, pessoas têm câncer e os intestinos da terra se mexem para derrubar prédios. Com certeza não é a vontade específica de Deus que as pessoas fiquem doentes. Esse papo de que devemos aprender uma lição na dor é cascata. Deus não quer isso. Tampouco deseja que nossas casas sejam engolidas por um furacão. E tampouco é a ação de uma personalidade maldosa que causa isto também, não sempre. Então o que é?
Se virmos doenças e terremotos não como mal, mas como desgostos, a coisa talvez mude de figura. De fato, ficar doente não é nenhuma maldade, é ruim, mas não é mal. A ordem do cosmos é a melhor possível, diz-nos Leibniz. Desgostos, que testam nossas crenças, que colocam em xeque nossa fé, que nos dão raiva contra Deus, há, mas a vida em outros mundos segue. Mesmo que aqui o câncer nos destrua.
            O pior argumento contra Deus, realmente, é a existência de doenças. A existência do mal pode ser explicada pelo livre-arbítrio. A psicopatia já cria complicações, porém, porque é a doença de pessoas manipuladoras e sem escrúpulos, que, embora não tenham sentimentos morais, sabem bem como eles funcionam nas outras pessoas.
Mas as doenças não têm explicação moral. Sua explicação é biológica. Por que Deus não criou o mundo de modo que não existisse o câncer ou que defeitos genéticos como a síndrome de Down não aparecessem?
Porque não tinha como fazer diferente, uma vez que a dinâmica biológica tem suas regras, as melhores possíveis, o que inclui acidentes também?
Não é necessário expurgar do texto poético, dizíamos, essas passagens.[7] Elas são a origem mesma da filosofia.
            Mudando um pouco de assunto, é curioso observar que Justiniano I, o imperador bizantino que mandou compilar o Corpus Iuris Civilis, é o mesmo a quem se imputa ter fechado a Academia neoplatônica[8], expulsando filósofos pagãos do império, os quais buscaram refúgio no império persa sassânida. Um dos movimentos considerados marcantes das translationes studiorum[9] teve ocasião justamente então. Na Pérsia, a breve estadia dos filósofos neo-platônicos deu impulso para que a escola de Jundi-Shapur fosse fundada.[10] De volta ao império bizantino, Simplício se instala na cidade de Harran, “onde uma escola neoplatônica autêntica e importante sobreviveria ao menos até o século décimo” (BECHTLE, 2000, tradução minha). Em 532, três anos após a decisão pelo exílio, Justiniano firma acordo de paz com o Império persa, em que consta uma cláusula garantindo aos filósofos “que esses homens, ao retornarem a seus países, deverão viver sem medo e livremente pelo resto de suas vidas, sem serem forçados a acreditarem no que quer que vá de encontro a suas visões ou a mudar as crenças de seus ancentrais.” (BECHTLE, 2000, tradução minha)
            Talvez se lembrando das lições de Marco Aurélio, seu antecessor na direção do império, Justiniano tenha voltado atrás.
            Tratando da arqueologia do eu, Ken Wilber, esse tesouro americano, nos dá uma análise da passagem da fase mítica para a lógica na ascensão interior até o Espírito:
            “This early mental self is at first a simple name self, then a rudimentary self-concept, but it soon expands into a full-fledged role self (or persona) with the emergence of the rule/role mind and the increasing capacity to take the role of other (F-4). The worldview of both late-F3 and early F-4 is mythic, which means that these early roles are often those found displayed in the mythological gods and goddesses, which represent the archetypal roles available to individuals. That is, these are simply some of the collective, concrete roles available to men and women – roles such as a strong father, a caring mother, a warrior, a trickster, the anima, animus, and so forth, which are often embodied in the concrete figures of the world’s mythologies (Persephone, Demeter, Zeus, Apollo, Venus, Indra, etc.). (…) These mythic roles are simply part of the many (sub)personalities that can exist at this preformal mythic level of consciousness development; they are preformal and collective, not postformal and transpersonal. A few “high archetypes”, such as the Wise Old Man, the Crone, and the mandala, are sometimes symbols of the transpersonal domains, but do not necessarily carry direct experience of those domains.
            (…)
            With the emergence of formal-reflexive capacities, the self can plunge yet deeper,    moving from conventional/conformist roles and a mythic-membership self (the persona), to a postconventional, global, worldcentric self – namely, the mature ego (…).
            As vision-logic begins to emerge, postconventional awareness deepens into fully universal, existential concerns: life and death, authenticity, full bodymind integration, self-actualization, global awareness, holistic embrace (…). In the archeological journey to the Self, the personal realm’s exclusive reign is coming to an end, starting to be peeled off a radiant Spirit, and that universal radiance begins increasingly to shine through,             rendering the self more and more transparent.” (WILBER, 2000, pp. 104-105)
            Wilber continuará a descrição da trajetória do eu desde a diferenciação do corpo ante a matéria circundante até a transformação da alma no Espírito; para nossos propósitos, porém, a análise precedente bastará se restar claro que o domínio mental não é o último da escalada de desenvolvimento humano.
            O esforço grego de diferenciação do mito na filosofia não foi bem sucedido socialmente; parece-nos que o domínio mítico da existência humana sempre será mais poderoso que o filosófico do ponto de vista social – algo que o próprio Platão percebeu, uma vez que inventava mitos para a explicação de etéreas realidades filosóficas.[11] Socialmente, a filosofia pode ter influência marcante apenas se aceita participar de uma proposta religiosa de salvação que perpassa e passeia pelos diferentes níveis do desenvolvimento humano.
            Como lembra Marco Pallis, o mito não se deixa aprisionar por dogmas e doutrinas, facilitando a comunicação de verdades que de outro modo poderiam ser debilitadas pelo escrutínio estéril de especialistas.[12] Ou, como diz Píndaro, “a fábula e suas ficções engenhosas têm sempre tido mais apelo sobre o coração dos pobres humanos que a linguagem simples da verdade, e a poesia, que a tudo embeleza, soube emprestar aos fatos mais incríveis a aparência da realidade”. (PINDARE, I, tradução minha)
            Não concordamos, porém, com Pallis quando afirma que a história mítica “era necessariamente tida como verdadeira”. Certamente os gregos tinham dúvidas sobre a veracidade histórica de seus mitos, muito embora, como diremos a seguir, tirassem deles grande proveito moral-espiritual.
            Assistindo à história de Hamlet, a rainha Elizabeth não precisava se perguntar se ela tinha acontecido de fato ou não. Bastava-lhe a verdade da própria história, ou seja, o impacto imaginativo que ela causava. Ulisses se vê na história que Demódoco conta.
            Tampouco a peça, como outras obras literárias, é tratada hoje como mero “entretenimento”. Não perdemos de todo a noção de que a literatura forma o imaginário moral de um homem.
            Vale-nos aqui Mário Ferreira dos Santos: “Essas ficções não têm correspondência enquanto tais, em sua forma, a realidades históricas, mas a diversas realidades históricas (D. Quixote tem um pouco de cada homem e de todos os homens, mais deste do que daquele, etc)”. (SANTOS, Noologia geral, p. 219)
            Em seguida ele diz: “Podemos compreender, portanto, esquemas que correspondem a uma combinação do real-ficcional com o real-histórico, o que nos permitiria, então, considerá-los gradativamente”. (SANTOS, Noologia geral p. 218)
            Ao contar um fato, o narrador, por definição, o torna uma história e introduz o elemento ficcional-imaginativo. Porque para ser aceito como fato, a situação narrada, chamemo-la assim, precisa antes ser aceita como possível. E para isso, precisa corresponder, sob aspectos variados, a situações já devidamente imaginadas, através das quais se a reconhece. A peça Hamlet consegue impactar o espectador porque ele enxerga a possibilidade de que um príncipe queira retomar o trono de seu tio usurpador e que, confuso, ele hesite em fazê-lo.[13] Ele fica impactado porque reconhece esse modo de agir, ou melhor, a potencialidade desse modo de agir na natureza do homem, de um e outro homem em particular. O ouvinte da história terá que fazer uma regressão imaginativa e pinçar de sua experiência os eventos que a história suscita, fazendo uso da função fantástica da mente (phantasia), como Aristóteles a entendia.[14]
            Em resumo, portanto: ao ser discursado, o real ganha necessariamente contornos ficcionais.[15] Ulisses vira lenda no canto de Demódoco. Ele se vê e chora.

                       
           









Ulisses na corte de Alcino, de Francesco Hayez

Por isso, aliás, jovens precisam de estruturas imaginativas, sem as quais não poderão saber, nem se trata de compreender, mas de saber mesmo, que determinados eventos e atitudes acontecem, porque ficariam incapazes de vê-las na imaginação. Não as tendo, passarão batidos por situações vivas e complexas, as quais são como se não existissem, porque não conseguem reconhecê-las. Se não se esforçarem por desenvolver o aparato imaginativo pelo qual podem reconhecê-las, essas situações vivas e complexas, porventura pessoalmente importantes, serão uma fonte de desgaste psicológico, uma vez que o ego não achará seguro sua emergência à consciência e reprimi-las-á. Neuroses coletivas de um povo existem. Basta o fingimento de que uma situação política relevante não esteja acontecendo seguido de sua gradual redundância em esquecimento. Neurose é o resultado do processo de falsificação de uma situação desconfortável (se não fosse desconfortável não se teria fingido que ela não existia) na qual se acredita ainda.[16]
Que seu grau de percepção de determinados fenômenos esteja afinado ou em queda um filósofo percebe logo; no jovem, entretanto, ele está à espera de ser ativado: é a ótima sensação que um primeiro contato com o maravilhoso da filosofia e da poesia causa. O espanto e a admiração deveriam ser o impulso inicial da atividade filosófica, não a paralisia em que Sócrates, reclamava-lhe Mênon, deixava-o com suas aporias.
            Cremos que o mito serve para evocar e incentivar certas realidades no homem. Uma vez, porém, que essas realidades já são parte de sua experiência viva, o mito deixa de ter o apelo de lembrá-las ao homem. Nesse momento, ele pode querer saber em que consiste aquela realidade: “Quid est...?” Surge, então, a filosofia. A definição mesma das realidades aludidas no mito pode também revelar outras possibilidades que não se percebia antes, desacreditando-o, portanto, em alguma medida pelo menos. Além de sua função coletiva -- todo mundo já foi criança e deles precisou --, o mito pode, entretanto, continuar a municiar a imaginação com possibilidades de compreensão. Os gregos não davam muita bola para seus deuses, mas não recusavam as histórias morais que os mitos encerravam.
            A filosofia é a técnica de enxergar diversos pontos de vista sobre um tema, circundando-o trezentos e sessenta graus, notando e vivenciando como suas as opiniões mais díspares dos sábios e dos agentes, vendo que significados tinham para eles a ponto de endossá-las, para então procurar enxergar sua raiz comum, seu centro irradiador, sua unidade; a filosofia é por excelência a busca da unidade, entre qualidade e quantidade, entre fatos e valores, entre as opiniões mais aparentemente contraditórias, não uma unidade falsa, artificial, mas a unidade presente nas premissas inconscientes que emanam destas opiniões; ela é um trabalho de anamnese, de rastrear as origens dessas opiniões, para ver se tem, ou se não tem, superfícies de contato, para ver se falam da mesma coisa e, em sendo assim, se se sustentam ante um horizonte mais amplo de visão, que as qualifica como certas sob um ponto de vista, relativo sempre, mas verdadeiro.
            Morihei Ueshiba, o fundador do Aikidô, mandaria “contemplar as obras do mundo, ouvir as palavras dos sábios, e pegar tudo o que fosse bom para si. Tendo isto como fundamento, abrir as próprias portas para o verdadeiro.” “Não despreze a verdade que está debaixo de seu nariz”, dirá.
Se a filosofia é uma técnica, não o é menos o amor.
            O amor e a filosofia chegam mesmo a ser muito parecidos, uma vez que o amor não é um mero ato de vontade, ele precisa entender o próximo, para amá-lo realmente, e não apenas declarar seu sentimento.
E o método para isso é colocar-se em seu lugar, tentar ver as coisas da maneira que ele vê. “O amor nasce apenas de uma compreensão enérgica dos motivos e sentimentos do vosso próximo”.
“O amor é o desejo de fazer bem aos outros”, diz o Livro de Urântia. Mas o amante não pára no desejo, ele pratica seu amor. O caminho de amar ao próximo pode muito bem ser ajudado pela técnica de como fazê-lo. E quem melhor que Jesus, o ser humano mais amoroso que houve, para nos ensinar como amar o próximo?
            Antes, porém, precisamos descobrir o que é o bem.
            Bem é a participação na perfeição divina. Daí que Jesus exorte: “Sede perfeitos como vosso Pai é perfeito”. A bondade nasce do relacionamento da criatura com o Pai, e resulta numa apreciação progressiva de valores e sua unificação com a experiência vivida no dia-a-dia. Ela se relaciona às vivências e escolhas pessoais de aceitar com sabedoria a luz do Pai. Porque uma pessoa busca a bondade – o bem refere-se à unidade suprema, lembram-se de Platão? – ela discerne progressivamente a verdade e a beleza, e então só lhe falta unificar esses elementos num ideal de serviço divino. “Quem faz o bem a um desses pequeninos, a mim o faz”. Rosenstock dirá que o “bem não “é”, exceto por propagação. Não está em nenhum homem, mas se origina apenas entre professor e aluno, entre pai e filho, entre o Pai maiúsculo e seus filhos, completo. “Exatamente como as crianças são procriadas, os dons do espírito, a fertilidade da bondade, o contágio do entusiasmo, a fecundidade do pensamento (...),” são “processos que emergem para a vida entre pessoas”. (ROSENSTOCK-HUESSY, 2001, p. 26)
            Jesus era bastante amado por seus apóstolos e seguidores, em geral. O amor também tem a característica de facilitar o amor, como disse Tomás Melendo.
            Jesus era assertivo e até ríspido se preciso, mas sempre deixava o outro escolher. Em momento algum de seu julgamento, seja ante o sinédrio ou perante Pilatos, ele fez uso de sua oratória para persuadi-los de que cometiam um erro, mas esteve pronto, sempre, a falar a algum de seus acusadores que desejasse sinceramente saber como proceder. Pilatos quase chegou a escutar Jesus, mas, covarde, vacilou nas horas decisivas.
            Jesus podia chamar a Pedro de Satanás, ou de hipócritas a certos fariseus, ou seja, ele não era delicado quando sê-lo implicasse fraqueza. Nunca hesitou em ser severo com os homens, quando a ocasião demandava tal disciplina.[17] Era firme na devoção de fazer a vontade do Pai.
            Como saber a vontade do Pai, para fazê-la?
            Vai aqui minha experiência pessoal. Guie-se pelo Ajustador do Pensamento, mas nunca ao preço de criar ansiedade para si. Ele não fala com você -- não como um colega seu fala -- mas lhe mostra, a cada momento, o que é possível fazer. Na realidade, perguntar-se sobre qual é sua vontade já significa estar realizando sua vontade[18].
            Além de bom, Jesus procurava ser gracioso, doce e amável. “A bondade torna-se eficaz apenas quando é atraente.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 171, 7, p. 1874) No capítulo sobre Natanael, o apóstolo com quem eu mais me pareço, Jesus diz que veio para que “meus irmãos na carne tenham alegria e vida de maneira mais abundante”.
            Sua ingenuidade absurda -- “Por que me chamam de bom”? -- faria muitos se perguntarem quem era esse homem tão bom, que nenhuma autoridade do bem disputava para si, surpreendendo-se de que não soubessem que o Pai é que o era. “Os últimos serão os primeiros”.
            Ele procurava ser compassivo, mas sem participar de uma autocomiseração, a qual pode trazer inação. Jesus procurava construir junto com o outro. Costumava pedir ajuda ao outro como forma de ajudá-lo, acionando o seu altruísmo.[19] “Esse mesmo Deus que declara não ter necessidade de nos dizer se tem fome, não tem pudores de mendicar um pouco de água à samaritana. Ele tinha sede... “Mas ao dizer “dê-me de beber” era o amor da pobre criatura que o Criador do universo reclamava.” (Lisieux, Oeuvres completes, pp. 220-221, tradução minha)
            Dissemos acima que Jesus não seria polido em qualquer ocasião. Mas ele era delicado o bastante para deixar o próximo à vontade, sem manifestar curiosidade para saber de sua vida; menos ainda constrangê-lo ou coagi-lo-ia de alguma maneira. Jesus respeitava o coração dos homens: se desejassem algo, ele já o teria percebido antes que precisassem dizê-lo, se não quisessem servir ao bem, pouco importaria alardear querê-lo aos quatro ventos. Jesus conhecia o coração dos homens e respeitava seus desejos, bons ou ruins. Era sua escolha de realizar ou não a vontade do Pai.
            Jesus fazia o bem “enquanto passava”, sem emprestar muita cerimônia ao que fazia ou dizia de bom, como algo corriqueiro junto às atividades diárias. Ele sabia do que o próximo precisava antes mesmo que o dissesse, porque enxergava sua experiência de vida através de seus próprios olhos.
É assim que se pode rezar inclusive, não é nem preciso pedir, uma vez que o necessário para si já o sabe o Pai, e ele nem precisa que nós peçamos para no-lo dar, basta que queiramos junto com ele. Que agradecemos. Que o critiquemos, que o xinguemos, se for o caso, mas que nos comuniquemos com ele. É o que ele quer. Pode xingá-lo.
            “O maior amor que existe é dar a vida por seus amigos”, Jesus disse e chegou a realizá-lo, por amor a seus inimigos inclusive[20].
            Mais importante que descrever o amor é vivenciá-lo[21], assim como para o médico é mais importante curar seu paciente do que se ver às voltas com rótulos diagnósticos.[22] Cumpre recordar um Whittaker Chambers mais velho, lamentando que seus amigos Quaker não tenham tido mais compreensão com ele, antes que se tornasse um comunista:
"The first friend I was J. Barnanrd Walton, a pleasant, business-like Quacker, who was then, I believe, the head of the Service Committee. I stayed in Philadelphia several days, meeting other Friends and canvassing the possibilities of my going to the Soviet Union. A new and enormously tranquilizng spirit enveloped me. It emanated from those quiet presences whom I met, from the chaste Quacker rooms with their plain and fine proportions, or simply from the sound of the plain language, as voices akesd me: "How is thee, Whittaker Chambers?" The 17th form was still touched with the sweetness of the Middle Ages. This is my natural home, I thought. I wanted nothing so much as to remain in it.
Then the story of my Atheist play reached Friends. There was a horrified reaction. I received one of those letters, such as only Quackers can write, which, in the most restrained language, said in effect: "You are outcast."
It was an invisible turning point in my life. If, at that moment, one Friend had said: "Sit down with me and tell me, what have you in your heart," this book need never have been written. (...)
At the time, I felt only a stinging sense of rejection. I asked myself bitterly: "Where in Christendom is the Christian?"
            Corta meu coração escutar histórias como esta. Como falta caridade a cristãos apegados à lei que Jesus não aboliu, mas transcendeu misericordiosamente. Na verdade, o Whittaker Chambers mais velho que escreveu Witness sabia que seus amigos Quakers morriam de medo de expor suas crenças às perguntas e objeções, embora sinceras, de um ateu, por isso camuflaram com ortodoxia suas inseguranças e incertezas. Ele entendeu isto e os perdoou.
Não importa se a pessoa acredita ou não em Deus nominalmente, desde que acredite na realidade do bem, no Ajustador do Pensamento, quer saiba disso ou não. E mesmo que esteja confusa, sobre se acreditar ou não em Deus é bom para ela, desde que esteja buscando. E, se não estiver, que siga seu caminho e vá com fé. Porque “cada mortal que, consciente ou inconscientemente, esteja seguindo o guiamento do seu Ajustador residente, está vivendo de acordo com a vontade de Deus”. (LU, doc. 107) E “quando a mente é dotada, desse modo, pela ministração do Espírito Santo, ela possui a capacidade para escolher (consciente ou inconscientemente) a presença espiritual do Pai Universal — o Ajustador do Pensamento”. (LU, doc. 34)
            Por fim, lembrar de ver as motivações do próximo, claro.
“Jesus amou tanto os homens porque atribuía a eles um valor muito elevado. Vós podeis melhor descobrir os valores dos vossos companheiros, descobrindo a sua motivação. Se alguém vos irrita, causando a sensação do ressentimento, deveríeis buscar discernir compassivamente o seu ponto de vista e as suas razões para uma conduta de tal modo censurável. Uma vez que tenhais compreendido o vosso semelhante, vos tornareis tolerantes; e tal tolerância amadurecerá a amizade transformando-a em amor”. (LU, doc. 100)




[1] Dentro de uma esfera de variância, claro, além da qual a pessoa não entendeu do que se estava falando, o que é o que acontece, aliás, quando se quer alegorizá-la sem humildade poética. Alegorizar o símbolo, caso à parte a poesia às vezes, é colonizar a mente alheia (e a própria).
A humildade poética sabe ser individualíssimo o seu entendimento, que existe sob um certo aspecto num determinado momento.
[2] Comentando os seguintes versos de Vinícius: “Fico ali respirando o cheiro bom do estrume / Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme” (Soneto de intimidade).
[3] Eles e suas contrapartes no século XX que negavam absolutamente valor à razão.
[4] Os noditas eram descendentes dos assessores extraterrestres do príncipe Caligástia.
[5] Conferir MARIANI, 2009
[6] Madura aqui não bastará ser adulta. Há atores de novelas que interpretavam vilões os quais relatam terem sido agredidos na rua. Não são só crianças que não sabem diferenciar a ficção da realidade. 
[7]           Sobre o tema dos poetas na República, conferir MOTTA, 2010, pp. 81-92.
[8]           Não se creia que a academia fechada por Justiniano fosse a mesma inaugurada por Platão. Esta foi destruída em 86 AC, quando Sulla sitiou a cidade de Atenas durante a primeira guerra mitridática. Filo de Larissa, o último escolarca da Academia, o equivalente a seu reitor, transferiu-se para Roma, onde deu palestras assistidas pelo jovem e entusiasmado Cícero.
[9]           “As translationes studiorum são movimentos históricos e socioculturais de translação de manuscritos, conhecimentos, filosofia e ciência” (COÊLHO, 2008) de um lugar para outro.
[10]          Ver O'Leary, Chapter V, 5.
[11]          Torcemos com Wilber pela eminência social do domínio transpessoal sobre o mítico, como ele os entende. É ótimo que os arquétipos tenham uma conotação mais marcante de sabedoria do que de mero antropomorfismo. Melhor, entretanto, é quando ambas as conotações podem ser unidas, como na figura do Pai Divino, que, muito mais do que poderia um mito – novamente conforme a terminologia wilberiana –, encerra uma realidade em si simbólica, como tal acessível ao homem em qualquer fase do desenvolvimento de sua personalidade. “Quando tudo estiver dito e feito”, aqui o gran finale do Livro de Urântia, “a idéia de um Pai será ainda o conceito humano mais elevado de Deus”. (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 196, 3, p. 2097) O homem agradece pela intuição simples carregada de sabedoria e amor.
            Sobre os significados distintos de arquétipo na filosofia clássica e na psicologia de Jung, conferir WILBER, 2001, 217-219.
[12]          Mais do que isso:
            “O “sentido mitológico”, um dos fatores da inteligência humana, corresponde a toda uma dimensão     da realidade, a qual, sem esse sentido, manter-se-á inacessível.” (PALLIS, 2003, tradução de     Miguel Conceiçâo)
[13]          Refiro-me a Hamlet, que respirou o ar podre no reino da Dinamarca.
[14]          Conferir livro III, 3, da obra De Anima.
[15]          Porque ele será imaginado, e as “imagens são, em sua maior parte, falsas”. (ARISTOTLE, On the Soul, Book 3, part 3, tradução minha). Aristóteles só errou por modéstia, as imagens são, por definição, falsas, no sentido de que são uma ficção; aquela ficção-real de que nos falou Mário Ferreira dos Santos acima, isto é, ficção com fundamento maior ou menor no real. Mesmo a imagem de um unicórnio, só conseguimos construí-la valendo-nos da imagem de entes reais.
[16] Essa falsificação é parte consciente, parte inconsciente, muito embora a própria pessoa não consiga admiti-lo, ou mesmo lembrar que em parte a quis. A lembrança da intencionalidade da falsificação só ocorrerá com a lembrança dos seus motivos. Porque então a pessoa está justificada ante sua consciência. É preciso uma misericórdia divina conosco mesmos no processo de descobrir por que agimos como agimos. A autoimposição de rigores morais excessivos ainda é um disfarce contra o autoconhecimento.  Responsabilidade é assumir (perante nós mesmos, não necessariamente perante o mundo) o que ocorre (nem mais nem menos) em virtude de nossa ação.
[17] Ecoa-me Rui Barbosa:
            “O Padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas:
“Bem pode haver ira, sem haver pecado: Irascimini, et nolite peccare. E às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur, peccat (diz um padre); patientia enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum malos, sed etiam bonos invitat ad malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a mansidão: porque esta virtude compreende dois atos: um é reprimir a ira, quando é desordenada; outro, excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre faz o seu ofício. E assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o Filósofo) ad quae oportet, et quibus oportet, irascitur, laudatur, esseque is mansuetus potest.”
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna.” (BARBOSA, 1921)
O sentimento de indignação moralista que move o brasileiro contra a corrupção deve bastante, decerto, a Rui Barbosa – na continuação desse trecho transcrito da Oração aos moços ele referir-se-á especificamente à corrupção. Não considero o sentimento ruim, mas quando sobrepuja toda e qualquer discussão política pode fazer mais mal que bem. Ter que se indignar a toda hora, o tempo todo, é esquecer-se de reconhecer e desfrutar o que de bom eventualmente esteja acontecendo, é muito chato, na realidade.
[18] Encontrei hoje, dia 13/10/2015, a seguinte passagem do Livro, que corrobora este entendimento: “Se quiserdes realmente encontrar Deus, esse desejo é em si evidência de que já O encontrastes”. (Doc. 130)
[19] Como o anjo ajuda Bailey no filme ‘Felicidade não se compra’, à exceção de que Jesus, suponho, não explicaria que estava querendo ajudar, a pessoa teria que adivinhar por si.
[20]          Jesus não é o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, imolado para pagar nossos pecados, mas, verdadeiramente, é um salvador.
[21]          “Um homem bom e nobre pode amar de um modo consumado à sua esposa, mas pode ser totalmente incapaz de passar satisfatoriamente em um exame escrito sobre a psicologia do amor marital. Outro homem, tendo pouco ou nenhum amor pela sua esposa, poderia passar nesse exame de um modo bastante aceitável. A imperfeição do discernimento daquele que ama sobre a verdadeira natureza do ser amado em nada invalida, seja a realidade, seja a sinceridade do seu amor.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 103, 8, p. 1140)
[22]          Como disse Hahnemann: “The physician's high and only mission is to restore the sick to health, to cure, as it is termed.” (HAHNEMANN) Essa primeira frase de seu Organon era a exortação ao médico para que não rechaçasse de antemão, sem conhecê-las, terapias que pudessem curar o paciente, como a da homeopatia, que Hahnemann apresentava neste estudo.

sábado, outubro 24, 2015

Como a esquerda assassina sessenta milhares de pessoas todo ano

Ela incentivou culturalmente a criminalidade, cultuando tipos como o jovem criminoso rebelde que luta contra os ricos, o sistema, o capitalismo, e que deseja apenas se expressar ao cometer assassinatos e roubos. Ele é um herói que segue seus instintos contra o moralismo careta burguês.

Ao mesmo tempo, retirou os meios da população de se defender dos criminosos; concretamente, desarmou-a.

Junto com isso, neutralizou moralmente a polícia e os militares, medida que ia ao encontro da glorificação do crime, mas que tinha um propósito estratégico próprio. 

A primeira estratégia tem também um efeito que realiza um desejo celerado e inconfessável da esquerda: eliminar os que considera indesejáveis, uma vez que as maiores vítimas da criminalidade sabidamente são pobres e negros. Este desejo histórico da esquerda, em Marx e Che Guevara, por exemplo, foi psicologicamente reprimido, mas retorna à superfície num lapso aqui, um deslize ali, para logo em seguida ser ocultado como acusação projetiva de racismo à sociedade em geral e a direitistas em particular. Neurotizam o desejo, ao invés de trabalharem sua sublimação. 

Neutralizar moralmente a polícia e os militares não ajuda a dar o salto qualitativo rumo ao totalitarismo soviético, porque as ditaduras comunistas precisam ser sustentadas na tora. Esta é a sinuca de bico petista, que eles tentam sobrebor, por um lado retirando poder político dos militares, por outro seduzindo a cúpula carreirista com cargos e salários, na esperança de que a corporação, se não irá apoiá-los deliberadamente, pelo menos omita-se de intervir em qualquer ocasião; sem Anás, ao menos Pilatos.

Mesmo esta tática, porém, pode sair pela culatra, porque se os militares afirmam peremptoriamente que não interviriam, o povo pode se sentir mais encorajado a ocupar prédios públicos e tirar de sua poltrona Ricardo Lewandowski, dizendo-lhe: "Cai fora, o povo não quer você aqui, para você acabou".

O MST correria ao primeiro grito dos Gladiadores de Cristo, por exemplo. Mais preocupante seria uma invasão militar boliviano-venezuelana. Se isto acontecesse, ou os militares destruiriam os exércitos comunistas latino-americanos ou adeririam ao projeto da Pátria Grande. Em ambos os casos ficarão bem, no primeiro, com honra e poder político, no segundo, como burocratas montados em direitos especiais, embora odiados na surdina pela população. 

segunda-feira, agosto 17, 2015

Fuck up the whole thing

O estamento burocrático-empresarial, de que fazem parte blógues sujos, jornalistas comprados nas redações da PIG, donos de veículos de mídia conchavadores, movimentos sociais que não arrecadam dinheiro da sociedade, todos estes assediadores moral-psicológicosprecisa ser destruído.

terça-feira, abril 21, 2015

Vida de casado

Findo o almoço, relaxava tomando um café e lendo um conto de Machado de Assis.

Ela entra na sala e sobressalta: "Ai, credo"!

-- O que foi?

-- Tem uma lagartixa na parede.

-- Ah é, tem mesmo.

Fez menção de voltar-se consigo no sofá.

-- !?!! -- porém ela olhou-o até que ele desse por isso.

-- Ah, deixa para lá, daqui a pouco ela vai embora.

Saiu resignada, contrariada. Triste um pouco.

Ele se acomodaria mais uma vez, tornou a ler, inclusive, mas não foi longe. Pousou o livro.

Daí tomou um gole de café e foi ver a lagartixa.

quinta-feira, março 12, 2015

O Corão à luz do Livro de Urântia

Jesus, o Filho do Homem, foi o último profeta de Israel porque o sinédrio judaico o rejeitou, não porque ele seria a coroação da longa lista de profetas. Já havia rejeitado outros, é certo, mas o Filho do Homem, e da maneira que foi, descredenciava a nação a segurar a tocha da profecia em Urântia.

Digo isso porque muita gente não entende o que é que Maomé foi fazer, por que é que foi entrar na história e fundar uma religião, uma vez que Jesus já tinha aparecido e concluído sua missão.

Essa uma questão que pessoas relutantes a acreditarem na possibilidade do Livro de Urântia ser uma revelação também levantam.

Jesus veio e concluiu sua missão, mas isso não significa que nenhuma outra revelação vai acontecer. Vai e ainda serão várias.

Quer dizer então que o Corão é uma revelação? Se não for, como pode o profeta iletrado ter dito aquelas coisas todas?

O Corão se insere e confirma a mitologia profética judaica, criada por escribas no séc. VI antes de Cristo de uma história sagrada de seu povo, a qual, já vimos, não é histórica, não aconteceu realmente. Israel não tinha doze tribos, por exemplo, algo que o Corão reafirma.

Mas então todo o livro é algo saído da mente de Maomé, não uma inspiração profética? Será que sua mente estava em erro, da mesma maneira que mentes em transe que pretendem dizer coisas profundas também estão?

Não.

Ele é tanto uma revelação como a Bíblia o é, com a diferença de que o discurso dos profetas judaicos não foi copiado quase que ipsis litteris, como o de Maomé.

O discurso dos profetas judaicos passou pela mediação dos escribas.

Não se pode alegar que o discurso de Maomé foi alterado, desvirtuado pelos escribas, o que está no Corão foi o que ele disse mesmo.

Então, se Maomé não é um falso profeta, realmente não acredito nisso, nem sua mente está em erro ("Não refletem no fato de que seu companheiro não padece de demência alguma? Que não é mais do que um elucidativo admoestador"?), me surgiram essas linhas de investigação:

Me ocorreu antes que Maomé poderia ter revelado tudo o que escutou, mas segundo o que foi capaz de lembrar, da mesma maneira que o pastor a quem foi sussurrado o salmo 23; isso explica desvirtuamentos menores, que pouco ou nada comprometem o sentido do discurso.

Mas não explicaria a história que contou dos patriarcas, a qual é a versão dos escribas judaicos, não a que realmente aconteceu. Não se trata de desvirtuamentos menores, trata-se de outro discurso.

Poderia ser que Maomé tenha revelado a seu povo aquilo que eles tinham condição de ouvir, de receber, da mesma maneira que fizera antes Moisés, guardando para si aquilo que ele sabia que eles não eram capazes de receber. Se assim fosse, o Corão não é a expressão cuspe e giz de revelações proféticas, ele é a reelaboração de Maomé daquilo que ficou sabendo.

Essa explicação é ótima, mas vai de encontro à tradição islâmica que diz que Maomé repetiu ipsis litteris as revelações.

Mas pode ser que Gabriel mesmo tenha confirmado o mito da história de Abraão e Moisés. Não é o LU que nos diz que as teorias sobre o cosmos que nos revelou deverão num prazo que eles chamam de curto ser reelaboradas em face de novas descobertas? 

Os próprios reveladores do LU nos dizem que nos revelaram o que estávamos prontos a saber naquele momento e que nosso conhecimento deverá ser expandido sob um novo quadro de referência depois de algum tempo. Pode ser que Gabriel mesmo tenha feito o papel de Moisés, narrando a história do mundo de um modo que os povos arábicos pudessem reconhecê-la e aceitá-la naquele momento, um modo que depois precisaria ser revisto. A diferença é que a advertência dos reveladores de Urântia diz respeito a uma teoria sobre o cosmos, não sobre eventos históricos. A diferença, claro, é que eles nos advertiram.

Mas nem toda revelação corânica acontece com uma pessoa, Gabriel, dizendo a Maomé algo que ele deveria repetir, como num telefone sem fio. Não. Wahy podia acontecer-lhe a partir dessa experiência que ele metaforiza como o dobrar do sino ou mesmo confiada diretamente a seu coração. (Introdução, Maariful Quran)

Ora, em sendo assim, a revelação deveria acontecer ao superconsciente de Maomé. Sua mente então poderia interpretá-la dentro do contexto de tradições judaicas subconscientizadas. Fiel e sinceramente.

Como o Ajustador do Pensamento falando para ouvindo moucos como os nossos.

O Corão nunca se autorizou como o verbo de Allah, ele autoriza Jesus como o verbo de Allah; o Corão se autoriza como Livro de Allah, da mesma maneira que autoriza o Pentateuco como Livro de Allah.

Essa explicação tem conseqüências profundas para o Islam. Significa que ele pode e deve evoluir.

A tradição de considerar todo o Corão como a palavra do arcanjo Gabriel meramente repetida por seu mensageiro Maomé foi estabelecida pelo próprio Maomé?

Estudar as origens do Corão me fez querer estudar mais as origens do próprio LU.

Todo mundo sabe sobre o sujeito adormecido, que o casal de doutores William e Lena Sadler foi visitar no andar de baixo de seu apartamento provisório em Chicago tão logo sua esposa bateu em sua porta pedindo avaliação médica para o estranho estado de seu marido enquanto dormia.

Quem era o sujeito adormecido, ninguém sabe. Seria bom investigar os moradores dos andares de baixo dos prédios em que moraram o casal Sadler entre 1906 e 1911.

O sujeito adormecido é o mesmo que a personalidade de contato?

No excelente livro "Dr. Sadler and the Urantia Book", Sioux Oliva argumenta que William Sadler era o sujeito adormecido.

A hipótese é plausível, mas implica que Sadler tenha mentido sobre a origem do LU, algo em que não acredito. Mas também é difícil de acreditar que nenhum membro do Fórum não tenha xeretado os encontros da Comissão de Contato para descobrir quem era seu sétimo membro, o sujeito adormecido. Será então que o contato através do sujeito adormecido se deu até o início das revelações dos documentos em 1924, quando então Sadler passou a ser a personalidade de contato? Isso manteria a palavra de Sadler, de ter visitado em 1911 o sujeito adormecido, depois de ser acordado no meio da noite por sua preocupada esposa.

Curioso notar que os estudiosos que procuraram padrões de escrita em documentos do LU para identificar seu autor humano, não fizeram o mesmo para confirmar se dois documentos assinalados ao mesmo autor celeste foram realmente escritos pela mesma pessoa. O método científico vai às cucuias. 

Tanto no Corão quanto no Livro de Urântia parece ter sido necessária a intermediação de um ser humano para a elaboração do livro. Se a materialização dos documentos de Urântia não precisou de uma mão humana para escrevê-los (Bill Sadler, filho do casal William e Lena, acreditava que se fosse possível ver a materialização dos documentos, ver-se-ia um lápis escrevendo sozinho no papel), as criaturas intermediárias responsáveis diretas pela revelação realmente usaram um ser humano em seu projeto. A pergunta que fica é: Esse ser humano serviu apenas de contato das personalidades celestes com as humanas ou de alguma maneira sua mente foi usada para que conceitos fossem vertidos para a compreensão humana?

O LU não está ligado diretamente a um homem, não existe um profeta, um guru. A mente humana tem um papel mínimo na revelação do LU, algo que nem na revelação de Jesus de Nazaré ocorreu. Quem quer que haja sido o sujeito adormecido, ele não foi um profeta, a não ser que atribuamos a William Sadler ou à Comissão de Contato a autoria do livro, o que eles negam peremptoriamente.


Adendo: A maneira com o que o profeta fica sabendo as coisas que sabe é intrigante. A própria vida de Jesus, não esqueçamos que Jesus não nasceu sabendo quem era; Jesus ouviu claramente alguém lhe dizendo: "Sua hora chegou", quando ia a Jerusalém aos doze anos. Ou João Batista. De que maneira ele soube que devia preparar o caminho para o Libertador, que inclusive era seu primo? Quem lhe disse? Como ficou sabendo o que fazer e o que dizer? Será que disse bem (o que lhe foi dado dizer)?

sábado, novembro 08, 2014

O alvorecer da humanidade e a primeira família humana



Livro de Urântia - II Ciclo de encontros.

O alvorecer da humanidade e a primeira família humana.

Organização dos encontros: Ricardo Ramos, Daniel Henriques Lourenço e Luiz Amorim.

Palestra realizada por Daniel Henriques Lourenço dia 09/10/2014, no departamento de sociologia do IFCS da UFRJ, a quem agradecemos a cessão das salas.

Agradecimento a Urszula Macińska pela gravação do vídeo.

sábado, junho 14, 2014

Kfourada

O motivo desse texto é uma discussão havida no facebook aqui, dela sendo desenvolvimento. Bom, só se fala nisso no Brasil hoje. A epígrafe das vaias de quinta poderia ser a observação cirúrgica de Joaquim Barbosa no dia anterior: "A República não pertence ao senhor nem a seu grupinho".

Ele faz pose de neutralidade superior pontificando sobre o preconceito da ímpar platéia. Mas Juca Kfouri é a elite branca, assim como Michael Moore é um stupid fat white man. Sua opinião vale tanto quanto a dos torcedores. Seus colegas de ESPN Brasil não vão dizer nada, seja porque concordam genuinamente com ele, porque não têm essa convicção toda, ou porque, sem concordar, não vão mexer com o medalhão da redação. Juca é um cínico, claro, mas talvez sequer seja falta de caráter, é um distúrbio cognitivo-afetivo, desenvolvido lá atrás e jamais solucionado. No regime militar era fácil pertencer ao partido dos bons contra os ditadores maus. O regime caiu, mas o cérebro ficou lá. O imperativo categórico de ser contra o regime, sob cujo prisma tudo o mais é avaliado, desautoriza de pronto as vaias. Dilma, a ditadora dos movimentos sociais, é a amiga que lutou contra o regime.

Juca Kfouri, jornalista talentoso e lúcido, é um idiota, e dá pena que ele seja.

Poderia simplesmente dizer que não concorda com as vaias, que acha o governo de Dilma bom, se não bom, que gosta dela, que a prefere a outros presidenciáveis, seria honesto, normal e até corajoso.

Nessa história toda, a falta de caráter está em não refletir sobre suas interpretações delirantes e, num segundo momento, sobre a idéia prevalente que lhas subjaz e as elabora.

domingo, junho 08, 2014

Vista do Sumaré

Noivos, casavam-se em três meses, era preciso comprar casa para morarem. Contactaram a corretora, olharam um, olharam outro, nada muito interessante; o último do dia era na Maria Amália, subindo a ladeira. Um que lhes encheu os olhos, três quartos, varandão, cozinha espaçosa, como ele queria, mas a vista, a vista, sim, tinha um pontinho de favela. Pequeno, é certo, mas estava lá. Um apartamento tão bom, que pena.

Comentou com a tia ao chegar a casa. Falou como era bom, e que tinha esse pequeno detalhe. A tia falou que ia ver com eles na semana seguinte. Ela ficou excitada. "Você não precisa morar lá sempre, dali a cinco anos vocês vendem, preço bom, uma oportunidade ímpar".

Compraram. Subia a pé a ladeira, os lances de escada, chegava, botava suas coisas do trabalho, se espreguiçava, beijava a esposa, cuidava do filho.

Sábado, foram a um churrasco na casa da tia na Barra. Ele, olhando para o céu pensativo, com o filho no braço, ela lhe pergunta: "O que você tem que está pensando"? Gusmão: "Não sei".

Final de semana, em mangas de camisa, debruçou os braços sobre o parapeito da janela e fumou um cigarro. Ao fundo o morro verde do Sumaré; à direita, porém, o ponto, pequeno, discreto: favela.

Dali a cinco meses venderam e foram morar na rua Guaxupé. 

sábado, abril 05, 2014

Responsabilidade de João Goulart pelo golpe de 1964

João Goulart pegou uma rabeira depois do “no show” de Jânio Quadros, com quem disputa o título de pior presidente da história do Brasil. Ele jamais deveria ter desafiado a hierarquia militar, e todo mês deveria ter feito um discurso anti-comunista, mesmo que fosse para manter as aparências. Não aprendeu com seu padrinho político, Getúlio Vargas, que isso era necessário. 

O político deve servir ao seu país, mesmo que isso signifique ir contra si mesmo, engolindo sapo atrás de sapo. Quando as tropas de Olímpio Mourão Filho desciam para o Rio, conta Pedro Simon, o general Amaury Kruel disse que as interceptaria se o presidente desse uma declaração anti-comunista. “Ah, vou ficar desmoralizado”. O saudoso Itamar Franco, que disputa o título de melhor presidente da história do Brasil, não tinha esses melindres pessoais.

domingo, fevereiro 02, 2014

Os shudras do capitalismo

Os shudras podem ser divididos em subcastas. há os trabalhadores técnicos, com formação técnica, a classe média, há o lumpemproletariado, que é mais propriamente o sentido clássico de proletariado, etc. Os shudra podem economizar, podem ter papel ativo dentro do capitalismo. Eles poupam para que alguém com uma idéia de exploração comercial lhes tome emprestado. Médicos, engenheiros, administradores, embora próximos da casta intelectual, porque se formaram em instituições mantidas pela casta intelectual, não são intelectuais. São profissionais liberais, profissionais especializados, só o cultivo de um cultura humanista em cursos livres lhes franqueará acesso aos bens espirituais da casta intelectual genuína. Esses bens espirituais, justamente porque são o bem, estão franqueados a todos os membros da sociedade, a despeito de sua casta, ou sub-casta. Ele perpassa todas as castas, e na realidade, ninguém é seu dono, mesmo seus soi-disant guardiões não têm poder de barrar seu acesso último, porque está presente em cada um, pelo Ajustador do Pensamento. Não se acha num livro, embora o livro possa facilitar seu acesso. O contato dos shudras com os bens espirituais, em nosso planeta, se pode dar através dos sermões de padres, sacerdotes, etc. Ou da leitura de livros.

Cientistas, pesquisadores, etc, classificaria como uma sub-casta que fica nas franjas da casta intelectual, quase num limite com as castas militar-política ou empresarial. Embora longe de discursarem sobre bens essenciais ou aparentes do homem e da sociedade, têm um nítido trabalho intelectual. Trabalham com as ciências úteis, ao contrário das inúteis. O produto de seu trabalho, mais que importantíssimo, é da essência do avanço do capitalismo e do poderio militar. É o tipo de profissional mais difícil de classificar na sociologia das castas.

Dinesh D'Souza não disse, mas os fundadores dos EUA, ao inverter a equação segundo a qual os brâmanes tinham todo o status e os empresários não eram lá bem vistos, eram de segunda classe, de terceira, no caso, ao inverter esse modelo, sem deixar no entanto de investir na espiritualização de seu empresariado, seja na rotina dominical de ir à igreja, de frequentar uma maçonaria leal a seus propósitos de devoção ao espírito, seja na generosidade comum de bater à porta do vizinho e perguntar como ele vai, eles, pelo cultivo dessas virtudes, permitiram de quebra a desproletarização dos shudras. Segundo o princípio da irmandade dos homens, ignorante e bárbaro, embora, esse homem que trabalha para mim é um irmão, que pode e deve ser educado. E uma vez educado pode se alçar como um vaixa de pleno direito. Se não se lançar, poderá contribuir para o conforto material da sociedade poupando aquilo que não precisa consumir.* Poderá, sobretudo, ser uma cidadão pacato e bom, ciente de seus deveres perante Deus e os homens.

No Brasil, a atividade industrial de pequenos empreendedores desenvolvia-se subterrânea, longe da atenção de políticos e intelectuais, que só quiseram enxergar a ação comercial de latifundiários, seja para apoiá-la ou criticá-la do ponto de vista nacional-desenvolvimentista, que não notava que a alternativa industrial estava a mão e não dependeria do fortalecimento do governo. Se a notavam, descartavam-na como atividade reles no momento mesmo em que no antigo continente o capitalismo ganhava status aristocrático, embora, lá como cá, preconceitos tenham continuado.**

Direi mais: a única saída para a nossa época planetária capitalista é a espiritualização dos vaixas, é que o motor principal de sua atividade seja melhorar a vida do próximo ao invés de enriquecer. Sei que liberais vão chiar, mas, fazer o quê? Elites devem ser responsáveis, devem saber que sua riqueza foi adquirida por um homem em meio a homens.      

O proletariado mental e a servidão voluntária continuam, porém. Só vão ser abolidos se o homem, além de investir nos bens do espírito, começar a selecionar seus semelhantes, sim, estou falando de eugenia, como isso será feito, não me arrisco a dizer, apresentem-se geneticistas e biólogos. Dava para começar esterilizando doentes mentais, algo que a época de glorificação da patologia sentirá como um escândalo.


* Nos anos 70, Peter Drucker notou que os principais fundos de investimentos eram de trabalhadores. Poupando, o trabalhador pode emprestar a juros baixos para que o empreendedor pegue o invento de um cientista e o acabe num produto cuja utilidade consegue mostrar e disponibilizar a um monte de gente.

** Com todos os vícios do bárbaro que aportou em nossas terras, o brasileiro tem um sentimento de aventura que, educado como vontade de descoberta do desconhecido, ao invés de caotizado como compulsão, deve ser incentivado, não tolhido.

quarta-feira, janeiro 15, 2014

A fatia do bolo, o jogo de soma zero, o virtuoso e a autoridade

"Most economic fallacies derive from the tendency to assume that there is a fixed pie, that one party can gain only at the expense of another." -- Milton Friedman

A teoria econômica socialista adverte que economia é um jogo de soma zero, que ter muito significa que alguém tem pouco.

Esse raciocínio está certo, por um lado, e por outro, errado.

Por quê?

Como já dissemos, dinheiro é um direito. A reunião de todos os direitos significa o direito de aquisição de todos os bens à venda. Ora, quem tem uma porção maior desse todo, tem direito a adquirir mais bens. Ele tem direito a adquirir uma fatia maior do bolo, o que equivale a dizer que outra pessoa terá uma fatia menor. Maior e menor são conceitos correlativos perfeitamente aplicáveis ao caso.

A economia seria, portanto, um jogo de soma zero. Alguém tem mais porque outro tem menos.

Mas, qualquer troca voluntária de bens implica um ganho de satisfação. Ninguém troca dez por nove, como dizia Donald Stewart. Ou seja, ninguém vai trocar, ou doar, algo, se não for para aumentar seu grau de satisfação, seja material ou moral. A idéia do melhor, que permeia toda atitude humana, nas trocas voluntárias está presente de maneira bilateral. Alguém quer trocar comigo uma maçã por uma laranja porque vai se satisfazer mais com uma laranja. Se eu achar que uma maçã vale mais para mim do que uma laranja, eu troco, se não, nada feito.

As trocas voluntárias implicam necessariamente um jogo de soma positiva. Ambos saem, a seus olhos, ganhando. O historiador brasileiro costuma achar que o português que dava espelhinhos em troca de informações sobre a localização do ouro estava explorando o índio. Mas o índio não pensava assim. Ouro, para ele, não valia muita coisa. Do ponto de vista de cada um, e mesmo que cada um achasse o outro um otário, houve um ganho mútuo de satisfação.

Só faz sentido falar em bolo quando se pensa em dinheiro, em direito. Porque o dinheiro absorveu em si todas as possibilidades de troca. Ele categorizou a troca, universalizou-a como compra-e-venda. Por isso o o dono do dinheiro pode adquirir bens por definir, os quais, enquanto indefinidos, enquanto bens, genericamente, se podem simbolizar como um bolo. O dinheiro dá a sensação de que o bolo é dado, embora seja preparado. Direitos dão a sensação de ser grátis.

No exemplo que usamos antes, a pessoa que troca uma maçã pode, lá atrás, ter pego a semente de uma maçã caída, plantado uma macieira, cuidado dela, até que desse frutos, os quais, agora, satisfeita sua vontade de comer maçãs, entrega as muitas que ainda tem de bom grado a outras pessoas em troca de um pedaço do bolo. Há um fundamento moral para que esse vendedor de maçãs tenha direito a um pedaço do bolo. Se ele produziu e vendeu, não algumas dúzias de maçãs, mas boas e grandes safras, se com elas ainda fez geléias que caíram no gosto de alguns, ou de muitos, tanto melhor, mais ele satisfez o próximo e mais justo é que tenha uma fatia de bolo maior.

A semente que nosso colega do exemplo pegou para plantar sua primeira macieira ele a achou caída. Todo e qualquer bem material tem origem física numa matéria, num recurso natural que ninguém criou. "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." Esse recurso material não é de ninguém. Isso significa que, para que alguém o use, é preciso que ele lhe seja assinalado por um autoridade, a ser exercida por mútuo consentimento, pela mera força, etc, tanto faz para o que queremos dizer. Se alguém estava sentindo falta de que mencionássemos governo, ordem, etc, aqui está. A propriedade precisa de uma autoridade que a garanta, a definição de propriedade é precisamente essa, faculdade garantida de usar algo mesmo que outra pessoa a reclame para si.

Se definimos, de maneira subjetivíssima*, o direito como a faculdade de agir não sujeita a uma coação posterior, a única ação que poderia ser considerada um direito que nenhum homem tem a capacidade de destruir por completo, é o pensamento espiritual. O homem pode sofrer lavagem cerebral, pode ser reduzido a um estado vegetativo por outro homem, pode ser morto, mas a cidadela do espírito sobrevive, continua. Aqui chega o poder da casta político-militar. Daqui em diante só o poder da genuína casta intelecto-espiritual tem acesso. Ela, porém, não age pela força física, pela intimidação mental, age pela atração do espírito. O único direito, portanto, que não dependeria de autoridade física alguma, é esse. Todos os outros, sim.

Bom, e o que isso tem a ver com o governo? Tem a ver que os recursos naturais, por não serem de ninguém, os quais nenhum homem criou, deverão ser assinalados a cada qual por uma autoridade; trata-se de uma incipiente justiça distributiva de Aristóteles.**

O que isso significa eu não sei, também não sei se deve alguém se sentir devedor porque o fruto de seu trabalho foi antes semente que achou. Mas ser grato à ordem política no qual a semente que achou, as árvores que plantou e cuidou, podem ser suas, e não de ninguém, não é mal algum.

Voltando ao bolo, e sobre a epígrafe desse texto, é muito fácil perceber que, embora seja sempre um, ele não tem o mesmo tamanho nem qualidade em todos os momentos. Quanto mais e melhor, ou menos e pior, se produz***, melhores, ou piores, serão os ingredientes e o cozinheiro do bolo.

Usando a metáfora caríssima de ministros petistas, se virmos o filme, não apenas a foto, a fatia de bolo pode hoje ter um tamanho bem diferente do que tinha noutro período. Minha fatia poderá continuar maior que a de outros, mas a deles pode ter crescido bastante, pode estar muito grande. É por isso que um canadense pobre pode ter um padrão de vida que muitos brasileiros remediados sonhariam em ter.

O fato de querer satisfazer o próximo, para que ele aceite trocar comigo o que eu quero, incrementa a qualidade do bolo, se não seu tamanho.

Na fábula, alguém terá uma fatia maior do bolo porque contribuiu melhor na sua preparação, porque produziu mais e com maior êxito de satisfação das necessidades alheias. As suas necessidades ele buscará agora no bolo, ele que tantas fatias já assou e entregou.

Alguém é mais amado quanto mais amável se mostra.


* Subjetivíssima porque não considera a relação homem a homem, ignora-a por princípio.

** "Os seres de livre-arbítrio que se consideram iguais, a menos que mutuamente se entendam como sujeitos a alguma supra-soberania, ou alguma autoridade sobre e acima deles próprios, mais cedo ou mais tarde serão tentados a experimentar a sua capacidade de ganhar poder e autoridade sobre as outras pessoas e grupos. O conceito de igualdade nunca traz a paz, exceto no caso do reconhecimento mútuo de alguma influência supracontroladora da supra-soberania."

* Essa produção deve ter algum êxito de satisfação própria ou alheia. Fazer algo que ninguém deseje, por exemplo, construir uma máquina que ainda não funcione, que seu dono jogará fora, embora mantenha o projeto, essa máquina não é um bem que satisfaz ninguém, ela não faz parte do bolo.  

domingo, janeiro 05, 2014

A surpresa de Jesus

Uma passagem curiosa do LU é quando Jesus, embora já sabendo quem é, de onde vem, não domina ainda totalmente o uso de seus poderes. Ele fica surpreso com o que é capaz de acontecer. Num lapso de segundo desejou algo, não decidiu, simplesmente desejou, que, pronto, se realizou.

Foi no casamento em Caná.

"O pai do noivo havia providenciado bastante vinho para todos os convidados listados para a festa do casamento, mas como poderia imaginar que o casamento do seu filho iria transformar-se em um evento tão intimamente ligado à esperada manifestação de Jesus como o Libertador messiânico? Ele estava encantado de ter a honra de poder contar com o célebre galileu entre os seus convidados, mas, antes que a ceia do casamento tivesse terminado, os serviçais trouxeram a ele a notícia desconcertante de que estava faltando vinho. No momento em que a ceia formal havia acabado e os convivas estavam perambulando no jardim, a mãe do noivo confidenciou a Maria que o suprimento de vinho tinha acabado. E Maria confiantemente disse: “Não te preocupes — vou falar com o meu filho. Ele vai ajudar-nos”. E assim ela ousou falar-lhe, apesar da reprovação de poucas horas antes.

Durante um período de muitos anos, Maria sempre se voltara a Jesus para pedir-lhe ajuda em cada crise da vida de seu lar, em Nazaré, e por isso era tão natural para ela pensar nele nesse momento. Essa mãe ambiciosa, entretanto, tinha ainda outros motivos para apelar ao seu filho mais velho nessa ocasião. Jesus estava sozinho, em um canto do jardim, e sua mãe aproximou-se dele dizendo: “Meu filho, eles não têm mais vinho”. E Jesus respondeu: “Minha boa mulher, o que tenho eu a ver com isso?” E Maria disse: “Mas eu acredito que a tua hora é chegada; não podes ajudar-nos?” Jesus replicou: “De novo eu declaro que não vim para fazer nada nesse sentido. Por que me perturbas de novo com essas questões?” E então, desmanchando-se em lágrimas, Maria suplicou: “Mas, meu filho, eu prometi a eles que tu irias ajudar-nos; por favor, farás alguma coisa por mim?” E então Jesus falou: “Mulher, por que tinhas de fazer tais promessas? Que não as faças de novo. Em todas as coisas devemos aguardar a vontade do Pai nos céus”.

Maria, a mãe de Jesus, ficou abatida, atordoada mesmo! Enquanto ela permanecia ali, imóvel diante dele, com as lágrimas caindo em seu rosto, o coração humano de Jesus ficou dominado de compaixão pela mulher que o tinha concebido na carne; e, inclinando-se para a frente, ele colocou a sua mão ternamente na cabeça dela, dizendo: “Espera, espera, Mãe Maria, não sofras pelas minhas palavras aparentemente duras, pois eu já não te disse muitas vezes que eu vim apenas para cumprir a vontade do Pai celeste? Eu faria de bom grado o que me pediste, se fosse uma parte da vontade do Pai” — e Jesus logo parou, hesitando. Maria pareceu sentir que alguma coisa estava acontecendo. Num pulo, ela jogou os braços em volta do pescoço de Jesus, beijou-o e correu para a sala dos serviçais, dizendo: “Fazei o que quer que o meu filho tenha pedido”. Contudo, Jesus não havia dito nada. Mas agora ele compreendia que havia já dito demais — ou melhor, que havia imaginado — , desejando por demais.

Maria dançava de júbilo. Ela não sabia como o vinho seria produzido, mas confiante acreditava que finalmente conseguira persuadir o seu primeiro filho a afirmar a sua autoridade, a ousar dar um passo adiante e reivindicar a sua posição, e a exibir o seu poder messiânico. E, por causa da presença e da coligação de certos poderes e personalidades do universo, das quais todos os presentes ignoravam totalmente, ela não ficaria decepcionada. O vinho, que Maria desejara e que Jesus, o Deus-homem, fez por aspirar humana e compassivamente, estava sendo produzido.

À mão estavam seis grandes potes de pedra, cheios de água, em cada um cabendo quase oitenta litros. Essa água estava ali para ser usada nas cerimônias da purificação final da celebração do casamento. A agitação dos serviçais por causa desses vasos imensos de pedra, sob o comando ativo da sua mãe, atraiu a atenção de Jesus que, indo até lá, observou que eles estavam tirando vinho delas, com jarras repletas.

Gradativamente Jesus tomava consciência do que acontecera. De todos aqueles que estavam presentes à festa de casamento de Caná, Jesus era o mais surpreso. Os outros vinham aguardando que ele fizesse algo prodigioso, mas isso era exatamente o que ele tinha como propósito não fazer. E, então, o Filho do Homem lembrou-se da advertência que o seu Ajustador Personalizado do Pensamento lhe tinha feito nas colinas. Ele lembrou-se de como o Ajustador o havia prevenido sobre a incapacidade, que qualquer poder ou personalidade tinha, de privá-lo das suas prerrogativas de criador, na independência do tempo. Nessa ocasião, os transformadores do poder, os seres intermediários e todas as outras personalidades imprescindíveis estavam reunidos perto da água e de outros elementos necessários e, em presença do desejo expresso do Soberano Criador do Universo, não havia como evitar o aparecimento instantâneo do vinho. E essa ocorrência fez-se duplamente certa, pois o Ajustador Personalizado tinha sinalizado que a execução do desejo do Filho não era em nada uma contravenção à vontade do Pai."