quinta-feira, julho 07, 2011

Conhecimento em Platão

"(...) a admiração é a verdadeira característica do filósofo."

À pergunta de Sócrates sobre o que seja o conhecimento, Teeteto lhe responde enumerando alguns, geometria, a arte dos sapateiros, etc. Mas Sócrates não quer saber de exemplos, quer saber o quid est da coisa.

Ele compara o processo de conhecimento, no caso de conhecimento sobre o conhecimento, com as dores do parto. "Algo em tua alma deseja vir à luz." Nenhum crescimento espiritual se dará sem alguma luta interior. Assim como com a virtude, o conhecimento é uma graça da divindade, que ele, Sócrates, tentará, como faz a parteira, de Teeteto parir.

A noção do conhecimento nascendo de um trabalho de parto remete-nos ao terceiro hexagrama do I Ching, cujo nome é Zhung, que representa a dificuldade inicial quando os princípios criativo, T'hien, e receptivo, K'un, se encontram para dar a graça a um novo ente.

Que os discursos baseados na verossimilhança ou na probabilidade não encerram o máximo de certeza alcançável Platão esclarece a contento, partindo em seguida para a demonstração do primeiro erro que o estudante iniciante de filosofia deve ser capaz de decifrar. Ele dá pistas aqui da sua divisão quatripartite do conhecimento, explicada no livro VI do diálogo A República. Antes, no livro V, ele o divide em três. A ciência ou conhecimento propriamente dito corresponde ao ser, ou seja, ao belo ou a justiça em si, para além da multiplicidade de entes belos que existem. De outro lado, a ignorância, ou o não-ser, significa a falta de qualquer conhecimento. Condição intermediária entre ambos, a opinião refere-se a entes relativos, que se graduam na multiplicidade da existência segundo graus de mais e de menos, como um ente pode ser mais ou menos belo, mas não corresponde ao belo em si, o qual escapa à mera opinião, e qualifica quem o contempla como filósofo.

Platão nos diz que a idéia do bem é o princípio da ciência e da verdade, e, como tal, muito mais preciosa que essas. Ele a compara ao sol que derrama sua luz sobre o ente conhecível e seu conhecedor, unindo-os em admiração. Mas Platão diz que o sol é o filho do bem. Sobre o bem em si ele prefere não discorrer naquele momento, tanto por sua incapacidade de apresentá-lo, porque não o divisasse com clareza ainda, quanto pela incapacidade de seus interlocutores de percebê-lo. Moisés sabe bem o que é não poder contar verdades que os interlocutores não poderão entender. Mas alguns autores, como Gomperz, secundado pela escola de Tübingen, acreditam que Platão tenha feito um discurso sobre o bem, o qual, se foi embora transcrito, não chegou até nós. Nele, Platão teria explicitado o pináculo de sua filosofia, que é o bem, o UM, princípio de todos os sub-princípios, aquele que se basta a si, mas também inicia a multiplicidade através de seu contra-princípio, a Díade ilimitada, que erra entre o mais e o menos até que o UM a meça. A Díade passeia horizontalmente por um mesmo reino da existência (o dos animais irracionais, por exemplo) até que o UM a determine em vários pontos, criando os múltiplos seres daquele reino; ela também varia hierarquicamente no plano vertical, de modo que o UM possa diferenciar graus diferentes de perfeição.

Difícil até aqui, não? Perdoem-me, mas não acabou. O Um sintetiza ainda as experiências de valor dos múltiplos seres, ele é o infinito qualitativo (o quantitativo é apenas potencial, porque qualquer contagem indefinida de números não acaba nunca, será sempre incompleta).

Respirem e sigamos. Platão divide então em quatro as faculdade de conhecer: a imaginativa e a faculdade de crer, embaixo, e acima, o pensamento e a intuição intelectual. Às duas primeiras correspondem as imagens refletidas em espelho, que não são a coisa em si, e os entes sensíveis, a coisa em si; às segundas os entes de razão -- ou entes matemáticos -- e os princípios, arkhai. Por que Platão não coloca no mesmo patamar o conhecimento matemático e o dos princípios? Porque a matemática refere-se justamente a entes de razão, modelos inexistentes no mundo sensível, que podem no entanto ajudar em sua compreensão, mas também podem prejudicá-la, caso se os pretenda suficientes. Um sistema matemático dedutivo pode, no máximo, ser probabilíssimo, nunca cem por cento, uma vez que parte de axiomas, os quais são por definição indemonstráveis. O que Platão chama de pensamento e que, podemos aduzir, assemelha-se ao que se chamou de razão ao longo do século XIX, corre o risco de auto-contradizer-se quando se esquece de que existe necessariamente uma realidade fora do sistema formal.

Platão não disse, mas essa realidade é o infinito (o UM). Não existisse o ilimitado, isto é, aquilo que não pode ser capturado num círculo explicativo formal, o universo inteirinho seria auto-contraditório - e fisicamente implodiria devido à entropia.

Ou é assim ou é o nada. Como "alguma coisa há" (não é verdade Mário Ferreira dos Santos?), então não pode não ser assim.

Os números conforme os entendiam os pitagóricos, diga-se entretanto, não são meros entes de razão, são os esquemas no ser próprio de cada coisa. O homem, por exemplo, tem um número que lhe dá o ser homem, já o UM, embora com esse nome, não é bem um número, mas o princípio primordial que dará o ser de cada coisa, inclusive o do homem, com todos os números possíveis que em seu bojo encerra. Os princípios são as razões últimas e os números as razões próximas das coisas. Numa escala ascendente, portanto, o pensamento nos entes de razão deveria ceder à intuição das idéias -- os números pitagóricos -- e dos princípios mesmos. E como vértice dessa pirâmide, para além do conhecimento apenas, a sabedoria, isto é, a busca por fazer o bem.

(http://www.urutagua.uem.br//006/06coelho.htm)


É razoável supor que esta estrutura seria depois assumida por Aristóteles para sua teoria implícita dos quatro discursos -- poético, retórico, dialético e lógico -- que Olavo de Carvalho descobriu.

Conhecimento não é sensação meramente, ou seja, conhecimento não é apenas a sensação que a coisa conhecida causa em mim, se assim fosse ninguém pagaria tanto dinheiro a Protágoras pra ensinar. Quando doente, a maçã me pode ter um gosto amargo, mas, se são, ela me parece doce. Em ambos os momentos quem comeu a maçã fui eu. Por que ela foi sentida de maneira distinta se eu, a medida de todas as coisas, conforme quer Protágoras, sou o mesmo que a comeu? Não só o conhecimento do outro deixa de ser confiável, mas o meu próprio, em outro momento de mim, também. Acontece que o eu é mais do que a soma de sensações a que se submete. "O eu humano não é meramente uma soma de estados sucessivos de consciência. Sem o funcionamento efetivo de uma consciência que seleciona e associa, não existiria unidade suficiente a garantir a sua designação como uma individualidade." (Livro de Urântia) No caso, o fato de eu estar doente faz com que a maçã só consiga se relacionar comigo revelando-se-me amarga. Uma coisa é o relacionamento entre um ente e seu admirador, o aspecto que aquele consegue a esse mostrar, proporcional à sua capacidade de recebê-lo, como Ortega Y Gasset mostra, com o brilho e arrogância que lhe são próprios, em sua doutrina do ponto de vista. É nesse sentido, aliás, que o Livro de Urântia pode dizer que a verdade é relativa. "Quando foi que lhes ensinei que deveriam ver tudo da mesma maneira?", diz Jesus a Tiago.

Outra coisa é dizer que os entes mesmos, e não aspectos seus, diferem de homem para homem. Claro que Protágoras se embanana aqui, seu discurso, como sugere Platão, tinha antes o intuito de "frase para armar efeito." Fosse ciência rigorosa, não poderia ter qualquer valor, uma vez tratar-se de algo que ele próprio diz só caber a ele mesmo. Sim, pois ele aceita "como verdadeira a opinião dos que o contraditam."

Os animais possuem sensações e até uma "coordenação fisiológica entre o reconhecimento e as sensações associadas e a memória correspondente, mas nenhum experimenta um reconhecimento significativo da sensação nem demonstra uma associação propositada dessas experiências físicas combinadas tal como se manifestam nas conclusões das interpretações humanas inteligentes e reflexivas." (Livro de Urântia)

Xavier Zubiri sublinha, deveras, que a sensação humana está no bojo da apreensão do que a coisa é por si mesma. Por exemplo, ao invés de, como o animal, apreender meramente que está quente, o homem apreende que o "calor é quente", e por isso esquenta, ou seja, o homem não apreende o mundo como estímulo apenas, mas como realidade. É o que ele chama de hiperformalização humana. Não se trata de descobrir, não ainda, o 'quid est' da coisa sentida, mas de sentí-la já como uma realidade. Zubiri parece tentar expressar em termos aristotélicos o senso intuitivo de presença da realidade. 

Dizer que a verdade é relativa é dizer que se dá na relação entre o ser vivo e o que conhece. Este projeta (pro + jectar, daí ob + jecto) aspectos seus que só aquele ser vivo pode conhecer. Daí que apenas enquanto participantes dessa relação se pode, a rigor, chamá-los de objeto e sujeito, ou seja, o que informa e o que é informado. O relativismo absoluto abole precisamente a relação proporcionada, de modo que a coisa deixa de ser conhecida, e o conhecedor, falso conhecedor, ocupa-se com uma figura arbitrária contra o vazio de sua recusa de percepção.

Dizer também que a coisa conhecida só consegue projetar alguns aspectos seus, não significa dizer que não se a conheça em si. Posso ver apenas a cabeça de um gato saindo de trás da porta, mas sei que é um gato.

Necessariamente a mesma coisa se mostra de maneiras diferentes para dois seres vivos. Ela se objecta a eles de duas maneiras, os quais, proporcionalmente, assim se sujeitam a ela.

Um mesmo homem pode se sujeitar duas vezes, e portanto de duas maneiras diferentes, à mesma coisa. Claro que ele continua sendo o mesmo homem nessas duas relações, mas as relações serão distintas. O eu continua em meio à mudança de sensações, porque o eu reflete as sensações distintas e as reconhece na idéia da coisa que as emite.

Platão diz-nos ainda que se todas as coisas estão em movimento, tanto de alteração constitutiva quanto de translação espacial, não poderíamos dar-lhes nomes, uma vez que sua identidade escoaria sem cessar. A brancura deixaria de ser, e não a poderíamos designá-la como tal. "Os adeptos de semelhante tese terão que criar uma linguagem nova," diz ele.

A linguagem implica, portanto, alguma estabilidade nos entes. O mero fato de esse texto poder ser compreendido por você, leitor, implica que há permanência nos entes em meio à mudança que atravessam.

A noção do conhecimento como um parto é também ilustrada no diálogo Mênon, quando Sócrates pergunta a um escravo qual a medida dos lados de um quadrado cuja área é de oito pés. Ele, iludido pela consciência de que os lados de um quadrado cuja área é de quatro pés tem dois pés, acredita que basta multiplicar por dois os lados desse quadrado para encontrar um cuja área é de oito. Sócrates faz-lhe perguntas até ele mesmo perceber que a superfície desse quadrado será o quádruplo da superfície do primeiro. Logo o escravo já está se dando conta que o lado deste quadrado deve ter entre dois e quatro pés, e depois que deve ter entre dois e três pés. Ele se surpreende com aquilo que já sabe e aquilo que não sabe.



Sócrates diz a seu colega Mênon: "És capaz de perceber mais uma vez, Mênon, o ponto de rememoração em que já está este menino, fazendo sua caminhada? Percebes que no início não sabia qual era a linha da superfície de oito pés, como tampouco agora ainda sabe. Mas o fato é que então acreditava, pelo menos, que sabia, e respondia de maneira confiante, como quem sabe, e não julgava estar em aporia. Agora porém já julga estar em aporia, e, assim como não sabe, tampouco julga que sabe."

Sócrates acredita que seu método de mostrar a uma pessoa que ela não conhece para valer aquilo que acredita que conhece lhe faz um bem, muito embora a desnorteie como a uma barata tonta num primeiro momento. Pois, diz ele, "agora, ciente de que não sabe, terá, quicá, prazer em, de fato, procurar (...)".

Procedendo por perguntas e respostas, Sócrates faz com que o escravo dê o ar da graça àquilo que, segundo ele (não sei se concordo com isso), já sabia, ou seja, que o lado do quadrado de oito pés é um quadrado inscrito num quadrado de dezesseis pés. Já sabia, mas o tinha esquecido, dirá Platão. O trabalho socrático consiste portanto numa rememoração do que foi esquecido.
  (http://www.prof2000.pt/users/amma/af18/t5/menon.htm)

Dar aula é um exercício de extrair do aluno o que ele já sabe (e pelo que já sabe chegar ao que não sabe, porém desconfia, por degraus), fazendo-o expressar-se a seu jeito, com suas palavras. Sócrates costumava encorajar seus interlocutores meninos a expressarem-se sem medo sobre aquilo que pensavam. Lançar-se a falar, ter que esboçar aquilo que está dentro de si, é a melhor maneira de iniciar o aprendizado. Como ele dizia, se a pessoa não sabe, vai se embananar e perceberá que não sabe aquilo que lhe parecia fácil de longe. O seriado Chaves mostra algumas situações deste tipo no cenário da escola. "Mas isso é muito fácil." "Ok, então me responda", diz o professor Girafáles.  "Mas é muito fácil, me dá outra." "Não, responda-me essa antes." E o aluno vê que não sabe. Em matemática, acontece de montão.

Como Sócrates disse, é realmente um trabalho de parto. As dores vão aperecendo para o bebê vir à luz.

O trabalho de Jesus era um pouquinho diferente. Consistia antes em acionar o altruísmo da pessoa pedindo-lhe ajuda, trazer à luz seu lume divino, mas não em limar seus erros (não de início). Não era um ensino técnico. Era um ensino de bondade, que se dava pela sua própria vida, pelo que era capaz de inspirar nas pessoas por quem passava.

O método socrático dificilmente seria utilizado por Jesus, porque Sócrates com freqüência sobrecarregava o interlocutor (e podia causar antipatia) com sua série de perguntas e correções. Jesus procuraria antes tornar seu evangelho atraente, gracioso.

Na realidade, quando Sócrates aceitou morrer por Atenas, sua vida também define-se (se faltava alguma dúvida) como uma inspiração. Não é à toa que muita gente compara a trajetória de ambos. Sócrates quis fazer a vontade do Deus interior, que naquele momento lhe sussurrava para ficar.

Outra conclusão tira Sócrates da experiência com o escravo. Pois, se ele já sabia, embora não lembrasse, aquilo que nos revelou, e se ninguém jamais lho ensinara nessa vida, segue que "tanto durante o tempo em que ele for quanto durante o tempo em que ele não for um ser humano, deve haver nele opiniões verdadeiras que, sendo despertadas pelo questionamento, se tornam ciências (...)". Ora, o que nele é imortal, diz Sócrates, é o espírito, que nele habita e que, em operação conjunta com a mente, conduz sua alma. Assim como sua personalidade, já existia antes mesmo que ele houvesse nascido. São presentes dos céus.

Talvez tenhamos pecado aqui segundo as linhas de Lao-Tsé: "O excesso de conhecimento conduz ao esgotamento." Aos poucos nos aprimoramos.

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