terça-feira, outubro 23, 2007

O declínio do riso

por Roger Scruton

A razão se mostra em todas as nossas tentativas de entender o mundo e em todas as maneiras de nos relacionarmos uns com os outros. Está presente nas nossas escolhas, e também nas nossas reações involuntárias. Apenas um ser racional é capaz de chorar ou corar, mesmo que essas duas reações estejam fora do alcance de nossa vontade. E apenas o ser racional é capaz de rir. Hienas fazem um som como de riso, mas não se trata na realidade de um sinal de contentamento, nem tem a função social que o riso tem – que é iluminar as nossas diferenças e alegrar-se com o que compartilhamos. O riso não é somente regozijo e satisfação, é a principal maneira de aceitarmos os defeitos de nossos semelhantes. E o riso, embora restrito aos seres racionais, deve ser espontâneo caso se pretenda real. O riso programado é uma espécie de zombaria; a risada espontânea é uma aceitação daquilo que a provoca, mesmo quando, ao rirmos de alguém, quebramos sua auto-confiança.

Uma sociedade que não ri é uma sociedade sem uma válvula de escape importante, e uma sociedade onde não se interpreta o humor bruto como o primeiro passo em direção a relações amistosas, mas como uma ofensa mortal, é uma sociedade onde a vida cotidiana tornou-se perigosa. Seres humanos que vivem em comunidades de estrangeiros necessitam desesperadamente de rir, caso não queiram ver suas diferenças transformadas em guerra civil. Essa foi uma das funções desempenhadas pela piada étnica. Quando poloneses, irlandeses, judeus e italianos competiam por territórios no Novo Mundo para onde haviam fugido, eles se abasteciam com uma reserva de piadas étnicas para rirem de suas manifestas diferenças.

O humor étnico foi estudado com profundidade pelo sociólogo britânico Christie Davies, e suas descobertas – no livro Mirth of Nations – são uma lembrete salutar da facilidade com que as soluções espontâneas criadas pela sociedade podem ser confiscadas pelos censores sem humor que querem nos governar. As piadas e provocações são gestos de conciliação, em que as diferenças se tornam inofensivas, jogadas para escanteio pelo riso. No entanto, em qualquer lugar do mundo moderno uma espécie de vigilância puritana está destruindo a piada étnica, condenando-a como uma ofensa à nossa humanidade. O que tradicionalmente era considerado como uma forma de prevenir conflitos sociais agora é visto como uma de suas principais causas: A piada étnica é acusada de “criar estereótipos,” e então maculada com a indelével pecha de racismo.

Ainda mais reprovável que a piada étnica aos olhos de nossos guardiões morais está a velha comédia dos sexos. Apesar de todo o inventivo labor das feministas, as pessoas comuns notam as diferenças bem reais entre os sexos, e a bastante necessidade de se acomodar essas diferenças e reduzir os conflitos a que elas podem dar ensejo. O humor tem sido o recurso clássico da humanidade para esse propósito, com o homem submetendo-se com graça à sua “melhor metade” e a mulher acatando os editos do “chefe da casa”. Mas quem agora ousaria fazer uma piada sobre relações sexuais ou sobre o temperamento feminino no campus de uma faculdade? Você pode pensar que a censura tem apenas um sentido: Haja vista que denúncias ferozes contra os homens, e disciplinas pseudo-acadêmicas inteiras dedicadas a repetí-las, são traços familiares na vida universitária americana. Mas tente fazer uma piada sobre os defeitos masculinos, e você se verá nos mesmos apuros que se tivesse feito uma piada sobre a fragilidade feminina. Isso porque para as feministas as falhas dos homens não são objeto de riso. Não há surpresa, portanto, no fato de na literatura feminina o humor estar ausente – o que faz bastante sentido, porque se o humor fosse empregado na literatura feminina, ela morreria rindo de si mesma.

Há muitos textos sem piadas na nossa literatura religiosa. O Velho Testamento está cheio delas – pense no aterrador livro de Josué – e o Corão é tão rigidamente sem piadas como qualquer documento que tenha sobrevivido aos esforços da humanidade de trivializá-lo. Mas isso aponta para outra área em que o humor se tornou perigoso. Cristãos, Judeus, ateístas, e Muçulmanos, vivendo lado a lado com aguda consciência das divisões entre si, e precisando desesperadamente da piada religiosa. Pela experiência da Diáspora, vivendo como estrangeiros ou residentes temporários em comunidades que a qualquer momento poderiam se voltar contra eles, os Judeus há bastante tempo têm consciência disso. Como resultado, as tradições rabínicas estão cheias de piadas auto-depreciativas, que sublinham a absurda posição de povo escolhido de Deus, vivendo às margens de um mundo que não sabe que é isso o que eles são. O humor judaico é um dos melhores mecanismos de sobrevivência jamais inventados – que ajudou não somente a sua sobrevivência mas a preservação da identidade judaica, em meio a uma história sem igual de tentativas de apagá-la.

Está claro para mim que precisamos de um repertório de piadas religiosas e do hábito de expressá-las sem temor. No entanto, muitos muçulmanos têm uma susceptibilidade exagerada para sentir-se desdenhados, e mal se pode fazer uma piadinha sequer sobre o Islam que não venha a ser interpretada como expressão de hostilidade. Aqui também os censores trabalham duro, privando a humanidade de sua maneira natural de resolver conflitos, e forçando-nos a adotar todo tipo de cuidados e deferência temerosa que são em realidade muito mais hostis do que uma gargalhada bem dada. É óbvio que religião é um assunto sensível, e a resposta britânica tradicional, de que não se deve jamais mencioná-la em sociedade polida, é compreensível. Mas num mundo em que os artigos de fé são cada vez mais beligerantes, a solução britânica deixou de ser viável. Sátiras do tipo que Molière dirigiu a Tartufo são exatamente o que os mullahs merecem. Satirizando-os, nós acertamos as contas com eles; também distinguimos seu ridículo farisaísmo da branda vereda de acomodação que os muçulmanos querem e precisam.

Um observador de fora não pode deixar de ficar atônito com o declínio deste tipo de humor nos Estados Unidos. Esse recurso humano universal, que nas obras de James Thurber, H.L. Mencken, Nathanael West, e outros grandes expoentes permitiram à América atravessar sem riscos convulsões sociais, e até acomodar a nova mulher americana, agora foi marginalizado ou desaprovado. Uma piada de mau-gosto pode custar-lhe a carreira, como Don Ismus recentemente descobriu – e qualquer piada que fale de raça, sexo ou religião, sofisticada o quanto seja, traz um sério risco de punição. Consequência disso é que um lúgubre silêncio envolve as grandes questões da sociedade americana moderna – um silêncio pontuado aqui e ali pelas histéricas manifestações de falta de humor dos que vêem suas sensibilidades artificiais provocadas.

Que isso é uma situação pouco saudável não é necessário mencionar. Mais deprimente, no entanto, são os efeitos na moral ordinária. No passado, era axiomático que as faltas deviam ser perdoadas se seguidas de clara intenção de repará-las. Esse axioma, ao que parece, não se aplica ao mundo da censura americana. Uma observação julgada “racista”, “sexista”,“estereotipada”, ou “homofóbica”, e você deve deixar o mundo das almas salvas para sempre. É o fim de suas perspectivas em qualquer carreira sobre as quais os censores exerçam controle – e isso significa qualquer carreira na educação ou no governo. Você pode rastejar o quanto queira, como fez Don Ismus; você pode representar o equivalente à peregrinação descalça do rei Henry II a Canterbury, e não fará diferença. Uma falta e você já era.

E não importa que não seja uma falta: Sua observação pode ter sido mal compreendida, sua piada pode ter ganho uma intenção não desejada, você pode ter cometido um ato falho – você pode, como o herói da grande novela de Philip Roth, The Human Stain, ter apenas usado no sentido comum uma palavra a que fora dado contexto político em algum romance.

De mais a mais, a habilidade dos auto-intitulados censores de discernir pecados ideológicos e heresias foi bastante acentuada pelo seu exercício diário de ressentimento. Esses acusadores sabem como distinguir crimes de pensamento racista, sexista e homofóbico na maior sem cerimônia. E eles não conhecem o perdão, porque eles não praticam, tal como todas as pessoas desprovidas de humor, o processo de auto-conhecimento. O desejo de acusar, que traz consigo a reputação de virtude sem o custo de adquirí-la, tomou o lugar da atitude humana habitual de perdoar, criando uma personalidade biônica familiar a todos que tenham tido de lidar com os lobbies que agora controlam a opinião pública na América.

Qual deveria ser nossa resposta a isso? É fácil de dizer que deveríamos rir disso. Mas perder sua carreira não tem graça alguma; menos graça ainda tem ser posto na lista negra da máquina de guerra islâmica. A mim parece que o necessário é uma classe de jornalistas rudes, arrogantes e cultos, que emprestariam apoio uns aos outros ao ridicularizarem a pretensão dos censores.

Nós tínhamos uma classe de jornalistas assim na Inglaterra até há bem pouco tempo. Durante todo o período de domínio das universidades pela extrema-esquerda nos anos 70, jornalistas como T.E. Utley, Peregrine Worsthorne, George Gale e Colin Welch dariam a seus leitores uma cobertura humorística, desrepeitosa e sem rodeios dos novos movimentos intelectuais. Como conseqüência, esses movimentos ganharam controle apenas das universidades e não da opinião pública. Alguns representantes daquela corajosa geração de jornalistas estavam na esquerda, como Alan Watkins e Hugo Young; alguns estavam na direita, como Utley e Worsthorne. Mas na disputa contra os censores eles juntavam forças, unidos no desprezo pela doença puritana. O resultado foi que cada um podia ser rude o quanto quisesse sobre o mar de estupidez que os cercava e ainda arrancar risadas acolhedoras dos leitores.

Infelizmente, a maioria daqueles jornalistas não está mais conosco, e lendo sobre o episódio de Don Ismus na mídia americana, eu imagino o que aconteceria se eles tivessem o seu equivalente por aqui.

tradução: Daniel Lourenço

3 comentários:

Luísa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Daniel, fiquei muito orgulhosa de sua excelente tradução. Há poucos como você! O texto "The Decline of Laughter" é muito interessante e muito verdadeiro. Hoje a gente tem medo até de rir!
Fazer graça, nem pensar!
Parabéns Daniel! Você é brilhante!
Daniel Brilhante adoraria tê-lo conhecido, estou certa.
um beijo,
Eliane Ferreira

Danielhenlou disse...

Obrigado Eliane, fico muito feliz que tenha gostado do texto. Realmente, hoje mal podemos dizer que um preto é preto, as pessoas olham errado..
Mas isso passa.
Um abraço,