quinta-feira, setembro 26, 2013

Onde está você, velho?

Em homenagem a Luiz Marta.

O Brasil não tem mais velhos, aqueles que inspiram respeito, não por seus cabelos brancos, mas pelo que vai debaixo deles, quiçá ainda num corpo robusto. Já os teve um dia, Dom Pedro II, Rui Barbosa. Não têm desses homens que nos passam a sensação de que o país está guardado, cuidado, tudo vai ficar e continuar bem.

Hoje o velho quer ser jovem, se o enxergamos como possível portador de verdades das vida, ele nos olha suspeitoso; ou se assanha em atrair nossa atenção, ansioso para contar suas histórias de vida, o que não é ruim, mas não combina com aquela gravidade filha do tempo, aquela ancianidade sábia, pronta para dar mais do que para receber, que procuramos.

O velho que nos apara os excessos, que dá conselhos, nos ouve as queixas, interessado sem ser invasivo, sacana e feliz.

Onde está você, velho?

quarta-feira, setembro 25, 2013

Os quatro níveis da atividade política

Em o que fazer?, Lenin define os quatro níveis da atividade política: teoria, propaganda, agitação e organização.

Destrinchemos cada um deles: as discussões teóricas se dão entre intelectuais, muito antes mesmo de qualquer programa político de ação, sequer os tendo em vista porventura. Nessas discussões formar-se-ão alguns grupos que concordam medianamente sobre alguns pontos. Nesse momento, a discussão teórica está madura para dar início à propaganda.

Identificados os pontos com que o grupo de intelectuais concorda, pode-se propagá-los para outras pessoas. A discussão se cristalizou e passa a ser matéria de crença, a água arisca tornou-se gelo, com forma fixa. Aqui entra a fase de convencimento; quer-se a adesão consistente de pessoas a um projeto de poder, que ganha corpo.*

Descendo na escala da elaboração intelectual, compactada em palavras de ordens, diluída em frases de efeitos emocionalmente carregadas, as conclusões provisórias das discussões teóricas agitam panfletariamente populares que se ocupam pouco de política. Não é necessária adesão consciente dos populares ao projeto definido na segunda fase, o objetivo aqui é que se repitam e propaguem, como a música que você canta sem notar que a está cantando ou lembrar onde a escutou, determinados pontos desse projeto que foram ao encontro de seus anseios, dando  expressividade a insatisfações vagas. O núcleo foi definido e começa a se expandir em raios concêntricos.

Pouco importa que os populares concordem ou não com o projeto, essa questão é para ser considerada na segunda fase, aqui importa que o fortaleçam segundo sua maneira de se relacionar com a política, que não é nem intelectual nem de engajamento contínuo, mas acompanhando-a com um interesse relativo. Conquistar sua "neutralidade benevolente" é passo importante para a vitória do projeto.

Nessa fase os partidários do projeto devem também se colocar como vanguarda, motivo de esperança para as aspirações de grupos menores, como o rio principal que recebe a afluência de outros rios.

Obviamente essas fases são tipos ideais, na realidade suas diferenças são de grau, da mesma maneira que no arco-íris não se chega ao azul sem passar antes pelo esverdeado.

A organização se liga intimamente à segunda fase. Ela é o suporte logístico para que a propaganda e a agitação aconteçam, ela angariará dinheiro, criará meios de comunicação, formará a militância, organizará congressos e comícios partidários, assim como conferências de pensadores mais ou menos afinados a seu projeto, não necessariamente orgânicos, para soprar o ar fresco dos debates sobre a doutrina programática.**

A organização poderá dar a seus membros o sentimento de pertencerem a um projeto que se prolonga inclusive para além de suas vidas, o que é um componente forte de atração.

A fase da discussão teórica é, por assim dizer, pré-ativista, da mesma maneira que os filósofos pré-socráticos, embora praticassem a filosofia, não tinham uma auto-consciência definida sobre sua atividade, uma vez que só depois Sócrates configurá-la-ia como um projeto. Da mesma forma, depois que o neoconservadorismo se firmou como uma doutrina política é que se pôde traçar seus antecedentes teóricos e identificar os grupos intelectuais que lhe deram as primeiras feições.


*Filtrou-se a discussão para que possa ser reproduzida; isso não significa, entretanto, que ela deva parar de existir. Se a continuidade das discussões torna provisórias as conclusões, submetendo a uma dúvida perene o programa, o que pode ameaçar seu grupo de crentes, por outro lado pode animá-los com novos desafios. Engessado, mais hora menos hora o programa ruirá.

**Passa sem dizer que nessas conferências os debates serão mais ou menos direcionados, inspirando nos futuros intelectuais o gosto pelos projetos políticos propugnados e reafirmando-o junto ao resto da audiência.

segunda-feira, setembro 23, 2013

O que é o estado, sobre a casta intelectual e considerações sobre a intelectualidade brasileira

"O estado é uma organização sócio-territorial reguladora", essa uma noção de estado que o Livro de Urântia nos dá. Ela, porém, não define o que seja o estado. Devemos tomá-la como ponto de partida para o seu estudo.

O LU também nos diz que o estado nasce da guerra, ele é, portanto, a instância última da força.

Falamos sobre o que é sociedade, sobre o que é direito, e chegamos à conclusão de que o direito tem sua razão na soberania. O que é soberania? Da onde vem? Vem da afirmação marcial, a soberania é o poder demonstrado de governar. A soberania não é uma possibilidade remota, é uma possibilidade iminente e real.* Para governar, é preciso ser obedecido, condição necessária mas não suficiente. Os EUA são obedecidos quando mandam a Síria entregar suas armas químicas, mas não governam o país.

A soberania é o vértice da pirâmide a que se referem os direitos, ela os garante, é o atributo essencial do estado, mas o que é o estado? É a organização que defende, exerce e elabora em regras sua soberania sobre uma sociedade vivendo em um território.

Contraposto ao estado, governo é o grupo político que manda provisoriamente e geralmente apenas em alguns aspectos -- em outros não -- do estado. Motivo pelo qual o presidente Itamar Franco, depois de assumir, disse essa frase: "Eu pensava que o presidente mandasse mais." É que a instituição já existe e o presidente será mais um de seus membros, muito importante embora. Há exceções: nos países comunistas, os governos comunistas mandam em todos os aspectos do estado. Mas mesmo eles são provisórios; quando o comunismo acabou na Rússia, com uma ou outra mudança, o estado permaneceu.

Se fosse absoluta, como quer Jean Bodin, a soberania não precisaria ser defendida. A soberania só é absoluta em teoria, na prática histórica ela busca ser absoluta; precisa ser continuamente conquistada numa sucessão de revezes, às vezes fatais, e êxitos provisórios. Não é que uma vez instalado, o estado o seja de uma vez para sempre. Por isso estados deixam de existir e passam a existir.

O que define a casta intelectual é o poder de ser seguida por sua força mental, ou mental-spiritual. Nesse sentido o Ajustador do Pensamento é um intelectual. A casta militar-política se define pela capacidade de ser obedecida por sua força física. Os politicos articulam em símbolos de fácil assimilação a força mental elaborada pela intelectualidade**, fazendo o linque entre as duas castas. Abrem o leque restrito de seguidores para praticar em larga escala o que mentalizaram. No Brasil, a maior parte da intelectualidade é seguida não por sua atratividade mental, mas pela promessa de distribuição de selos de qualificação mental que habilitam ao exercício de determinados ofícios e cargos; vivemos um simulacro intelectual em que os seguidores fingem machadianamente acreditar no que pensam os intelectuais de cadeira para obter diplomas profissionais necessários.

Aqui, o fingimento machadiano é compensado por uma aposta de corpo e alma em partidarismos, que, quanto mais insustentáveis moral e intelectualmente, mais servirão para que seu defensor prove socialmente e para si sua lealdade, sua intensidade de espírito, que na frente do espelho, antes de tomar banho, ele sabe ser uma forma rebuscada de fingimento, a qual demanda sua crença na própria mentira. Não se surpreenda se vez ou outra ele chorar em frente ao espelho.

Qual a solução para isso? Trocar a aposta, apostar de corpo e alma na verdade, onde quer que ela venha a se mostrar; essa é uma aposta imparcial, que no entanto lhe vai demandar parcialidade em certas situações da vida, porque muitas vezes a verdade vai estar numa parte, ao invés de em outra; outras vezes, muitas vezes, você simplesmente não saberá o que fazer; aguarde que ela se lhe manifestará se você tão apenas a quiser.


*Mário Ferreira dos Santos diria que não é epimeteica, mas prometeica; não é futuro do pretérito, é futuro do presente.

**Que perde em fineza o que ganha de impulso e capacidade de mobilização.

domingo, setembro 08, 2013

Valor e motivação do serviço

Bem no iniciozinho do Capital, depois da fazer uma distinção salutar entre valor de uso e de troca de uma mercadoria, aquela definida como a utilidade qualitativa que uma mercadoria tem, essa como a quantidade proporcional de bens ou dinheiro aceita a ser dada em sua troca, Marx diz que o valor de uma mercadoria, valor por excelência, sem genitivos, deriva da quantidade de trabalho empregada para produzí-la.
 
Mas vamos pensar num exemplo: um carioca sai de seu confortável apartamento rumo à Amazônia à procura de um tipo  raro de pedra, que só existe em uma região remota da floresta. Abre flancos pela mata densa, afugenta animais, dorme ao relento, caça, por fim consegue achar sua pedra e a traz para o Rio. Monta então uma banquinha no meio da rua e a apresenta ao distinto público. "Vejam que maravilha de pedra excêntrica achei, me custou um trabalhão trazê-la para cá e lapidá-la ao gosto da senhora freguesa." A dona dá uma olhada, acha a pedra feia, e não a quer em seu quarto. Outras pessoas passam, acham curioso o anúncio do rapaz, mas vão embora sem a pedra. O que aconteceu? Ninguém quer a pedra, seu valor econômico é zero, apesar de todo o trabalho para conseguí-la.
 
Marx tinha começado bem e se embananou todo. Por mais que valorizemos o trabalho, devemos valorizar também o serviço, que significa tentar adivinhar do que as pessoas precisam, que significa não fetichizar nossos gostos como valores absolutos, justificados a posteriori pelo empenho de trabalho a satisfazê-los. Os valores bons o são porque são bons, não porque tivemos que trabalhar por eles. Muito embora a dedicação em alcançá-los também tenha grande significado.
 
Voltando ao tema econômico, é claro que a dificuldade na produção de uma mercadoria impactará em seu valor de troca. Por exemplo, ninguém pagaria caro por gasolina se ela brotasse de um poço cavado no quintal. Antes de ser refinada, a gasolina foi petróleo em geral difícil de extrair. Mas, como há quem a deseje, alguém pode se dar o trabalho de produzí-la, cobrando caro por isso, claro. Se ninguém a quisesse, entretanto, produzí-la em escala seria, se não um capricho pessoal, um fetichismo egoísta.*
 
Se não identificado e desmascarado, o fetichismo egoísta, porque outras pessoas não o compartilham, por definição não o compartilham, conduzirá a delírios de injustiças contra si e de perseguição pessoal.
 
A criação artificial de sentimentos de necessidade é um efeito colateral, um mal, da economia voltada para o lucro como princípio. Só a motivação do serviço procura enxergar as reais necessidades das pessoas para suprí-las. Da mesma maneira que numa relação erótica, o prazer sensual é maior quanto maior for o envolvimento amoroso, e tende a se esvaziar se buscado por si mesmo, o lucro viria como conseqüência da vontade de servir ao próximo.
 
 
*O processo de descobrir necessidades econômicas das pessoas, provendo-as, sujeita-se a fracassos, mas nem por isso se trata de um fetiche; ao contrário, trata-se de empreender.    

Nobres, burgueses e continuidade histórica

Meu colega Marcio Hack escreveu no facebook que em nossa época todo mundo parece querer enterrar seu passado, que é difícil em sua própria família desencavar histórias de vida de seus avós, etc. Comentei que esse fenômeno é menor na Europa, onde, devido à nobreza e ao sentimento que inspirou na sociedade, as pessoas têm um maior apreço pelo seu passado. Li em algum lugar uma vez que em Portugal era preciso demonstrar que até a quinta geração anterior ninguém havia feito trabalhos braçais para que você pudesse ser considerado um nobre. Deixando de lado a questão do trabalho, isso implicava que o aspirante a nobre estudasse e conhecesse as histórias de vidas de seus antepassados. No Brasil, falemos a verdade, muitos de nós mal sabemos o nome de nossos avós, e de nossos bisavós sabemos no máximo um tanto do que fizeram, de onde vieram. Claro que nos países americanos a imigração contribuiu para a ruptura com o passado, essa, aliás, é uma razão da vitalidade americana, mas, por outro lado, a continuidade histórica das famílias e países é duramente conquistada. Um nobre na Europa, ou ex-nobre, não só não mantém segredo de suas origens familiars, como a exibe com orgulho muitas vezes, quem não sabe sobre os brasões das famílias? Na América, EUA em particular, os ricaços donos de empresas globais, cujos negócios atravessam gerações dinásticas, ao contrário, fazem segredo sobre suas histórias de sucesso, como alcançaram a riqueza e a mantém, os Rotschild, Rockefeller, Ford, a corporação, não querem gente bisbilhotando suas vidas, o que deve ser um sentimento burguês.* A nobreza européia, a casta xátria, que remonta aos senhores feudais, tem, como um bom militar, orgulho de suas façanhas guerreiras e gosta de incensá-las. Duas maneiras de ver o mundo. Mas que é bom saber quem foi seu bisavô, ah, isso é.
 
 
*Alguns empresários de sucesso de fato lançam livros sobre como chegaram lá, como administrar sua empresa, etc, mas geralmente são os pioneiros de um negócio cuja continuidade histórica e dinástica não é certa. Será que os netos dos donos do Google, caso mantenham o poder que seus avós têm, quererão escrever livros sobre suas habilidades negociais? Ou se esquivarão da curiosidade alheia?