XXII A Diferenciação do
Mito em Filosofia
Pode ser que nem toda
a fantasia do homem sobre o universo seja um fato, mas muito nela é
verdadeiro (Doc. 196).
“Early philosophical efforts
translated the insights of the dissolving mythology into terms that go beyond the image, or at least reduce
its distracting presence. Abstraction, logic, and
mathematical philosophy would ultimately emerge from this difficult and epochal transition from concrete to
abstract diction.” (MCEVILLEY, 2002, p. 28.)
Alegorias são ilustrações de
conceitos, de ideias.
Mito é uma história alegórico-simbólica que dá um quadro referencial
explicativo a fenômenos cuja origem não se pode explicar plenamente. Ele seria
a ciência das ciências, não fosse o fato de não ser científico. Não o é
justamente porque extrapola relações materiais de causa e efeito para mostrar
correlações, analogias. O mito, neste sentido, tem muito mais a ver com o
processo de entendimento humano do que a ciência, uma forma de conhecimento não
só lógica e abstrata, mas bastante específica, porque nem sempre estamos
prestando atenção à causa eficiente dos acontecimentos. Sempre, porém, mesmo
sem querermos, estamos esquadrinhando sua causa formal. É o que cientistas
fazem quando imaginam um átomo depois de terem precisado características suas.
Alguns mitos podem ser criados a partir de uma experiência clara e
distinta também. Quando Platão criou o mito da caverna, veja, não é um mito que
se estabelece pela tradição oral, com uma variação aqui ou acolá, que
está no imaginário coletivo como ciranda, cirandinha, e cuja origem mal se pode
rastrear, é um mito com um propósito educativo evidente; nesse caso, ele é
a representação de uma realidade cujo acesso é muito facilitado pela
representação. São as madeixas que Rapunzel joga, ao contrário do pé-de-feijão
que brota. O caminho a percorrer, porém, é o mesmo.
O Livro de Urântia no documento 151 nos dá pistas para entender a
diferença entre uma parábola e uma alegoria. Esta tem uma “linguagem
codificada”, como diz Rafael Falcón, que se deveria descodificar. Alegorizar
uma parábola seria dar-lhe um sentido unívoco, enfiando nela mais do que seu
sentido eminente sugeria, mais do que o aspecto que se quis enfatizar; seria
individualizá-la segundo um entendimento específico, atendo-se a detalhes
secundários. É próprio da parábola ser imaginada de maneira pessoal por cada
pessoa. Ela tem muito em comum com o mito: trata-se de uma história que tende
ao simbólico quanto mais capaz de provocar interpretações diferentes,
interpretações que não estão erradas por serem diferentes[1],
porque são adequações mentais a apelos moral-espirituais.
A alegoria expressa figuradamente o que já se sabe; o símbolo
impressiona ao invés de exprimir, ele aponta ao que não se entende ainda, ao
que não foi feito para se entender totalmente, porque não é função do símbolo
apontar conceitos (por isto seu objeto não é definível), mas jogar luz sobre
experiências e realidades significativas com suas nuances e tensões.
A fábula e a parábola são diferentes do mito porque encerram uma lição
moral, o mito não necessariamente, não apenas. A parábola usa elementos
humanos, enquanto a fábula, narrativa que consagra a prosopopéia, usa elementos
fantásticos. Jesus não gostava de fábulas, porque nela é fácil perder o contato
com a realidade, é fácil pirar na batatinha, além de poder prestar-se para que
enfiem goela abaixo qualquer aspecto absurdo com truques imaginativos. Por
isso, preferia parábolas naturalistas, que inspiram a sensatez, o pé no chão. A
idéia, porém, é a mesma. Outra diferença é que o mito transita na imaginação
humana entre a verdade histórica e a ficção, a fábula e a parábola não
pretendem ser reconhecidas como verdade histórica.
Quando o mito do bom selvagem surgiu, algo de um sentimento de mal-estar
pela correria da vida urbana e o gosto de vida arcádica havia, mesmo gosto
que Jacinto (personagem de Eça de Queiroz em A cidade e as serras) sentiu ao
mudar-se de Paris para a vilazinha portuguesa, de onde não quis mais sair,
mesmo gosto que sentimos ao visitarmos o sítio da avó no interior.
Em evento sobre Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino disse que o cheiro
de merda no campo é bom, na cidade não, mas no campo, merda de vaca, é bom[2].
O mito do bom selvagem apela a imagens de praias paradisíacas e de mata
densa, ao contato com a natureza. Ele explica o mal-estar de uma civilização
que teria decaído de seu estágio primitivo, o qual, se não era lá muito
tecnológico, era mais feliz, menos brutal. Seu quadro de referência tangencia a
valorização da experiência da vida tranqüila e sensitiva do campo.
Mais amplo que ele, o mito da natureza foi o tema das festas jacobinas
em comemoração à queda da Bastilha no Champs-de-Mars. “Natureza” apelava tanto
à noção de ordem superior, quanto à simplicidade arcadiana. De fato, o
qualificativo "natural", em direito natural, ordem natural,
liberdades naturais, já teve um grande apelo. Era o "social" da
época, que também está passando. Foi um lema para a classe média liberal cheia
de pretensões intelectuais e políticas que ascendeu com a revolução.
Eu posso, porém, apreciar uma vida idílica no campo e nem por isso
achar que o homem primitivo é bom. Considerada a evolução
espiritual de então, ele é tão bom quanto qualquer homem de
hoje ou do futuro.
Peço licença para repetir uma citação do L. U.:
“Os intelectos parciais, incompletos e em
evolução estariam desamparados no universo-mestre, seriam incapazes de formar o
primeiro modelo de pensamento racional, não fosse pela capacidade inata de toda
mente, mais elevada ou mais baixa, de formar um quadro do universo
dentro do qual pensar. Se a mente não pode estabelecer conclusões, se não pode
penetrar as verdadeiras origens, então essa mente irá, infalivelmente, postular
conclusões e inventar origens para que possa ter um meio de pensar logicamente
dentro da moldura desses postulados criados pela mente. E, conquanto essas
molduras do universo para o pensamento da criatura sejam indispensáveis à
operação intelectual racional, elas são, sem exceção, errôneas, num grau maior
ou menor.
Os quadros conceituais para o universo são apenas
relativamente verdadeiros; eles são um andaime útil que deve finalmente ceder o
seu lugar diante das expansões de uma compreensão cósmica ampliada.”(LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 115,
p. 1260)
Essa passagem por si só serviria
para pensadores do século XIX que acreditavam no poder absoluto da razão
colocarem as barbas de molho.[3]
Nosso tema agora não é esse, porém.
O mito encerra uma verdade relativa.
Ele deriva de uma experiência genuína, mas o quadro de referência que cria para
colocar em evidência essa experiência é mais (ou menos) arbitrário.
Por isso os mitos podem ser aperfeiçoados, de modo que dêem um quadro
mais exato da realidade, ou melhor, de modo que sua alegoria simbolize mais e
mais a realidade a que se referem. Não vejo como alguém pode dizer se Tales
estava filosofando ou criando um mito quando disse que a água era a origem de
todas as coisas.
O mito grego da criação do mundo diz que do CAOS primordial
diferenciou-se Géia, a qual “gerou a Urano (Céu), que a cobriu e deu nascimento
aos deuses”. (BRANDÃO, 1986, p. 185)
“Ó
Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja
velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O que queres dizer com isso?”
“Quanto à alma, sois todos novos – disse ele”. (PLATÃO, 2011, p. 83)
Platão,
então, relata-lhes o mito pelo qual um demiurgo bom gerou nosso mundo, um ser
dotado de inteligência, com a forma esférica – a mais perfeita, segundo Platão
–, de modo a conter em si todas as formas possíveis. A partir do mundo o
demiurgo extraiu os seres que o habitariam.
Platão
pretendeu substituir a narração mitológica clássica da criação do mundo por um
mito que ele considerava mais próximo do que efetivamente teria sido a ação
criadora do mundo.
“Thus the first peoples, who were the children of human race, founded
first the world of arts; then the philosophers, who came a long time
afterwards, and so may be regarded as the old men of the nations, founded the
world of the sciences, thereby making humanity complete.
This history of human ideas is strikingly confirmed by the history of
philosophy itself. For the first kind of crude philosophy used by men was autopsia or the evidence of senses. It
was later made use of by Epicurus, for he, as a philosopher of the senses, was
satisfied with the mere exhibition of things to the evidence of the senses. And
the senses of the first poetic nations were extremely lively, as we have seen
in our accounts of the origins of poetry. Then came Aesop, or the moral
philosophers whom we would call vulgar. (As we have noted above, Aesop preceded
the seven sages of Greece .)
Aesop taught by example and, since he lived in what was still the poetic age,
he took his examples from fictitious similitudes. (The good Menenius Agrippa
used one such to reduce the rebellious Roman plebs to obedience.) An example of
this sort, or better still a true one, is even now more persuasive to the
ignorant crowd than the most impeccable reasoning from maxims. After Aesop came
Socrates, who introduced dialectic, employing induction of several certain
things related to the doubtful thing in question. (VICO, 1948, p. 174)
Na
infância da república americana, George Washington foi pintado como um herói
curioso, incapaz de mentir, entre outras coisas. Um livro preferido
de Abraham Lincoln era "The Life of George Washington, With Curious
Anecdotes, Equally Honorable To Himself and Exemplary To His Young
Countrymen", com histórias fantásticas sobre o founding father. Hoje, passada a infância americana,
Washington é biografado com rigor histórico, o que não precisa,
necessariamente, diminuir a afeição que se tem por ele. A filosofia
não mata o mito, ela pode até exaltá-lo (“O filósofo é também amante do mito,
pois o mito consiste em coisas admiráveis”, disse Aristóteles).
É
interessante notar que no fato de serem explicações provisórias para a
realidade mito e ciência são iguais. A abstração do mito em teorias
verificáveis na experiência física não torna a realidade plenamente
compreensível, mesmo uma realidade recortada.
“A
insistência em novos testes vem do fato de nenhuma teoria ser perfeita,
existindo sempre dentro de limites de validade. A própria teoria da
relatividade explica coisas que a teoria de Newton não explica, como os três testes acima. A esperança é que,
ao expor a teoria a testes cada vez mais sensíveis, será possível vislumbrar
onde ela falha. Essas falhas, por sua vez, apontam para novas teorias, novas
idéias sobre a natureza. É sempre bom lembrar que a ciência é uma narrativa que
se aprimora constantemente”. (GLEISER, 2007)
Ciência
são hipóteses explicativas de fenômenos naturais que os experimentos não têm
desmentido.
Pode até
acontecer de o mito conter uma verdade cuja cientificidade, antes rejeitada,
virá depois a ser afirmada. É realmente risível, aliás, que cientistas queiram
dar risinho e fazer pouco sobre a mitologia antiga quando acreditam que novos
universos são criados a todo momento, confundindo probabilidade com atualidade
dentro da mecânica quântica.
Exemplo de
mito relegado à desconfiança que recuperou status científico: a existência da
guerra de Tróia.
O Livro de
Urântia confirma vários mitos e desbanca outros. Deus não mandou Abraão matar
Isaac até interrompê-lo no último momento, mas Adão e Eva realmente existiram,
embora não tenham sido os primeiros seres humanos; o diabo existe realmente; a
mitologia dos heróis gregos não veio do nada, baseou-se em sua ascendência
adamita e nodita[4];
Tor foi um líder militar bem sucedido antes de ser venerado como deus; a árvore
do jardim do Éden, jardim que também existiu, não era a árvore do conhecimento
do bem e do mal; e por aí vai.
O Livro de
Urântia traz também o exemplo da história dos reis magos atraídos por estrelas
como um mito criado por pessoas bem-intencionadas, mas sem fundamento, porém.
Houve os sábios do Oriente, que vieram pagar visita à luz da vida nascida em
Israel, e na mesma época houve uma conjunção astral incomum. Os eventos, porém,
não estão conectados. Os sábios do Oriente foram avisados por um Serafim.
O filósofo
Platão quis expulsar poetas de sua cidade ideal, mas ao mesmo tempo com
freqüência citava como autoridade Homero e era, ele próprio, um criador por
excelência de mitos. “Intimacies and reciprocal distrust made iconic by
Plato” (George Steiner). Como
se explica isso?
A
pinimba de Platão é antes uma acusação contra os imitadores baratos,
macaqueadores, do que contra os poetas em geral. Queria ele a imitação poética
da virtude, não do vício, a qual devia ser banida. Machado de Assis e Nelson
Rodrigues (esse, então, nem se fala), dois escritores com uma acuidade
psicológica de primeiríssima qualidade, que se dedicaram antes a analisar o
vício do que a virtude, se contorcem agora; teriam que se desdobrar para
conseguir seu lugar na República.
Machado poderia dizer em seu favor o que, como censor do Conservatório
Dramático Brasileiro, escreveu em favor da peça As leoas pobres, citando seu
próprio autor, Émile Augier:
“Thérèse:
Mas existem certas feridas sociais que seria mais sábio esconder.
Pommeau:
Para que a gangrena se instale nelas? De jeito nenhum! Podemos expô-las à luz
do dia, mas encostando nelas o ferro em brasa. A verdadeira finalidade da
comédia não é a de encorajar o vício escondendo o seu segredo, mas o de
enfraquecê-lo desmascarando-o.”[5]
Mas
Platão sugeriu também, motivo pelo qual é acusado de autoritarismo, que as
obras poéticas devam passar por uma censura antes de serem lidas para as
crianças e jovens. “Pois a criança não pode discernir o alegórico do literal, e
as opiniões que acolhe nesta idade tornam-se, comumente, indeléveis e
inabaláveis”. (PLATÃO, livro II) Bom, muita coisa ruim que chegou à minha mente
quando jovem eu fui depurar com a filosofia, de Platão, por exemplo. Difícil de
aceitar, Platão, é que se apaguem das obras poéticas passagens consideradas
viciosas ou mentirosas, como as em que Homero relata disputas entre os deuses.
Um professor pode muito bem selecionar as passagens virtuosas de uma obra
literária que quer que seu aluno leia, afastando as viciosas, assim como um pai
proíbe seu filho menor de assistir à novela das nove (deveria proibir a das
sete também!). Pode também usá-la, o professor, numa turma mais madura[6],
como ensejo para uma discussão sobre a natureza da Deidade. Será mesmo,
perguntará socraticamente o professor, que:
““Dois tonéis se encontram à soleira
de Zeus,
Um cheio de sortes felizes, e outro,
infelizes,”
E aquele ao qual Zeus concede de
ambas
“Ora experimenta do mal, ora do
bem;”” (PLATÃO, 1965, p. 140)
Será mesmo que Deus trata assim aos
homens? Ou será que quer o seu bem? Mas, se os ama e é bom, por que não impede
o sofrimento humano? Etc., etc.
Como Deus permite o sofrimento
humano, se é bom? Chama-se a esse problema teodicéia. Esboço aqui um tratamento
da questão: A vontade de Deus não é unívoca, ela tem planos. Não é da vontade
de Deus que alguém pratique o mal, muito menos o mal deliberado. Mas é da
vontade dele que a pessoa possa escolher, possa decidir. A vontade dele
fundamental é o livre-arbítrio das personalidades.
Por isso, quando alguém peca, isto
é, quando deliberadamente dá uma volta em Deus; não é vontade sua que ela
peque, isso seria contradição em termos, mas é vontade sua que ela possa pecar,
e que peque realmente se assim escolher.
A vontade específica de Deus é o bem
na situação concreta, mas ela não é decisiva, não sempre, ao menos, porque o
livre-arbítrio não pode ser suprimido. Claro que Deus mexe pauzinhos para que a
iniquidade não gere resultados devastadores, ou ele seria um Deus de Newton
tricotando alheio à vida lá fora. Os resultados de iniquidades ele pode evitar
e pode também promover o bem, é o que faz toda hora, mas não suprime as
escolhas das criaturas de vontade.
Mas e as doenças, catástrofes
naturais, que causam sofrimento? São elas fruto da vontade de personalidades
também, sempre? Esse é um dos problemas mais difíceis que existem, a meu ver.
Sei que os Portadores da Vida verão muitas excrescências biológicas, que não
planejaram quando implantaram o plasma da vida no planeta, no decorrer da
evolução; o acaso realmente existe na evolução das espécies, embora o plano
diretor, apesar das linhas marginais, seja mantido. Sei também que depois que
surge a criatura de vontade, o ser humano, como nos conhecemos em nosso planeta,
passa a ser o responsável pelos ajustes biológicos eventuais. Fazemos isso
selecionando animais, espécies de plantas. No longo prazo, faremos também com
os micro-organismos que geram doenças. Eles não mais serão prejudiciais.
Enquanto isso, pessoas têm câncer e
os intestinos da terra se mexem para derrubar prédios. Com certeza não é a
vontade específica de Deus que as pessoas fiquem doentes. Esse papo de que
devemos aprender uma lição na dor é cascata. Deus não quer isso. Tampouco
deseja que nossas casas sejam engolidas por um furacão. E tampouco é a ação de
uma personalidade maldosa que causa isto também, não sempre. Então o que é?
Se virmos doenças e terremotos não
como mal, mas como desgostos, a coisa talvez mude de figura. De fato, ficar
doente não é nenhuma maldade, é ruim, mas não é mal. A ordem do cosmos é a
melhor possível, diz-nos Leibniz. Desgostos, que testam nossas crenças, que
colocam em xeque nossa fé, que nos dão raiva contra Deus, há, mas a vida em
outros mundos segue. Mesmo que aqui o câncer nos destrua.
O
pior argumento contra Deus, realmente, é a existência de doenças. A existência
do mal pode ser explicada pelo livre-arbítrio. A psicopatia já cria
complicações, porém, porque é a doença de pessoas manipuladoras e sem
escrúpulos, que, embora não tenham sentimentos morais, sabem bem como eles
funcionam nas outras pessoas.
Mas as doenças não têm
explicação moral. Sua explicação é biológica. Por que Deus não criou o mundo de
modo que não existisse o câncer ou que defeitos genéticos como a síndrome de
Down não aparecessem?
Porque não tinha como
fazer diferente, uma vez que a dinâmica biológica tem suas regras, as melhores
possíveis, o que inclui acidentes também?
Não é necessário expurgar do texto poético,
dizíamos, essas passagens.[7]
Elas são a origem mesma da filosofia.
Mudando um pouco de assunto, é curioso observar que Justiniano I, o
imperador bizantino que mandou compilar o Corpus Iuris Civilis, é o mesmo a
quem se imputa ter fechado a Academia neoplatônica[8],
expulsando filósofos pagãos do império, os quais buscaram refúgio no império
persa sassânida. Um dos movimentos considerados marcantes das translationes
studiorum[9]
teve ocasião justamente então. Na Pérsia, a breve estadia dos filósofos
neo-platônicos deu impulso para que a escola de Jundi-Shapur fosse fundada.[10]
De volta ao império bizantino, Simplício se instala na cidade de Harran, “onde
uma escola neoplatônica autêntica e importante sobreviveria ao menos até o
século décimo” (BECHTLE, 2000, tradução minha). Em 532, três anos após a
decisão pelo exílio, Justiniano firma acordo de paz com o Império persa, em que
consta uma cláusula garantindo aos filósofos “que esses homens, ao retornarem a
seus países, deverão viver sem medo e livremente pelo resto de suas vidas, sem
serem forçados a acreditarem no que quer que vá de encontro a suas visões ou a
mudar as crenças de seus ancentrais.” (BECHTLE, 2000, tradução minha)
Talvez
se lembrando das lições de Marco Aurélio, seu antecessor na direção do império,
Justiniano tenha voltado atrás.
Tratando
da arqueologia do eu, Ken Wilber, esse tesouro americano, nos dá uma análise da
passagem da fase mítica para a lógica na ascensão interior até o Espírito:
“This early mental self is at first a
simple name self, then a rudimentary self-concept, but it soon expands into a full-fledged role self (or persona) with the emergence of the rule/role mind and the increasing capacity
to take the role of other (F-4). The worldview of
both late-F3 and early F-4 is mythic,
which means that these early roles are often those found displayed in the mythological gods and goddesses, which represent
the archetypal roles available to individuals. That is, these are
simply some of the collective, concrete roles
available to men and women – roles such as a strong father, a caring mother, a warrior, a trickster, the anima, animus, and
so forth, which are often embodied in the concrete
figures of the world’s mythologies (Persephone, Demeter, Zeus, Apollo, Venus, Indra, etc.). (…) These mythic roles
are simply part of the many (sub)personalities
that can exist at this
preformal mythic level of consciousness development; they are preformal and collective, not postformal
and transpersonal. A few “high archetypes”, such
as the Wise Old Man, the Crone, and the mandala, are sometimes symbols of the transpersonal
domains, but do not necessarily carry direct experience of those domains.
(…)
With
the emergence of formal-reflexive capacities, the self can plunge yet deeper, moving from conventional/conformist roles and
a mythic-membership self (the persona), to
a postconventional, global, worldcentric self – namely, the mature ego (…).
As
vision-logic begins to emerge, postconventional awareness deepens into fully universal, existential concerns: life and
death, authenticity, full bodymind integration, self-actualization, global awareness, holistic embrace (…). In
the archeological journey to the
Self, the personal realm’s exclusive reign is coming to an end, starting to be
peeled off a radiant Spirit, and that
universal radiance begins increasingly to shine through, rendering the self more and more
transparent.” (WILBER,
2000, pp. 104-105)
Wilber continuará a descrição da trajetória do
eu desde a diferenciação do corpo ante a matéria circundante até a
transformação da alma no Espírito; para nossos propósitos, porém, a análise
precedente bastará se restar claro que o domínio mental não é o último da
escalada de desenvolvimento humano.
O esforço grego de diferenciação do mito na filosofia
não foi bem sucedido socialmente; parece-nos que o domínio mítico da existência
humana sempre será mais poderoso que o filosófico do ponto de vista social –
algo que o próprio Platão percebeu, uma vez que inventava mitos para a
explicação de etéreas realidades filosóficas.[11]
Socialmente, a filosofia pode ter influência marcante apenas se aceita
participar de uma proposta religiosa de salvação que perpassa e passeia pelos
diferentes níveis do desenvolvimento humano.
Como
lembra Marco Pallis, o mito não se deixa aprisionar por dogmas e doutrinas,
facilitando a comunicação de verdades que de outro modo poderiam ser
debilitadas pelo escrutínio estéril de especialistas.[12] Ou, como diz Píndaro,
“a fábula e suas ficções engenhosas têm sempre tido mais apelo sobre o coração
dos pobres humanos que a linguagem simples da verdade, e a poesia, que a tudo
embeleza, soube emprestar aos fatos mais incríveis a aparência da realidade”.
(PINDARE, I, tradução minha)
Não
concordamos, porém, com Pallis quando afirma que a história mítica “era
necessariamente tida como verdadeira”. Certamente os gregos tinham dúvidas
sobre a veracidade histórica de seus mitos, muito embora, como diremos a
seguir, tirassem deles grande proveito moral-espiritual.
Assistindo
à história de Hamlet, a rainha Elizabeth não precisava se perguntar se ela
tinha acontecido de fato ou não. Bastava-lhe a verdade da própria história, ou
seja, o impacto imaginativo que ela causava. Ulisses se vê na história que
Demódoco conta.
Tampouco
a peça, como outras obras literárias, é tratada hoje como mero
“entretenimento”. Não perdemos de todo a noção de que a literatura forma o
imaginário moral de um homem.
Vale-nos
aqui Mário Ferreira dos Santos: “Essas ficções não têm correspondência enquanto
tais, em sua forma, a realidades históricas, mas a diversas realidades
históricas (D. Quixote tem um pouco
de cada homem e de todos os homens, mais
deste do que daquele, etc)”. (SANTOS, Noologia geral, p. 219)
Em seguida ele diz: “Podemos compreender,
portanto, esquemas que correspondem a uma combinação do real-ficcional com o
real-histórico, o que nos permitiria, então, considerá-los gradativamente”.
(SANTOS, Noologia geral p. 218)
Ao contar um fato, o narrador, por definição, o
torna uma história e introduz o elemento ficcional-imaginativo. Porque para ser
aceito como fato, a situação narrada, chamemo-la assim, precisa antes ser aceita
como possível. E para isso, precisa corresponder, sob aspectos variados, a
situações já devidamente imaginadas, através das quais se a reconhece. A peça
Hamlet consegue impactar o espectador porque ele enxerga a possibilidade de que
um príncipe queira retomar o trono de seu tio usurpador e que, confuso, ele
hesite em fazê-lo.[13] Ele
fica impactado porque reconhece esse modo de agir, ou melhor, a potencialidade
desse modo de agir na natureza do homem, de um e outro homem em particular. O
ouvinte da história terá que fazer uma regressão imaginativa e pinçar de sua
experiência os eventos que a história suscita, fazendo uso da função fantástica
da mente (phantasia), como
Aristóteles a entendia.[14]
Em
resumo, portanto: ao ser discursado, o real ganha necessariamente contornos
ficcionais.[15] Ulisses
vira lenda no canto de Demódoco. Ele se vê e chora.
Ulisses na corte de Alcino, de Francesco Hayez
Por isso, aliás, jovens
precisam de estruturas imaginativas, sem as quais não poderão saber, nem se
trata de compreender, mas de saber mesmo, que determinados eventos e atitudes
acontecem, porque ficariam incapazes de vê-las na imaginação. Não as tendo, passarão
batidos por situações vivas e complexas, as quais são como se não existissem,
porque não conseguem reconhecê-las. Se não se esforçarem por desenvolver o
aparato imaginativo pelo qual podem reconhecê-las, essas situações vivas e
complexas, porventura pessoalmente importantes, serão uma fonte de desgaste
psicológico, uma vez que o ego não achará seguro sua emergência à consciência e
reprimi-las-á. Neuroses coletivas de um povo existem. Basta o fingimento de que
uma situação política relevante não esteja acontecendo seguido de sua gradual
redundância em esquecimento. Neurose é o resultado do processo de falsificação
de uma situação desconfortável (se não fosse desconfortável não se teria
fingido que ela não existia) na qual se acredita ainda.[16]
Que seu grau de
percepção de determinados fenômenos esteja afinado ou em queda um filósofo
percebe logo; no jovem, entretanto, ele está à espera de ser ativado: é a ótima
sensação que um primeiro contato com o maravilhoso da filosofia e da poesia
causa. O espanto e a admiração deveriam ser o impulso inicial da atividade
filosófica, não a paralisia em que Sócrates, reclamava-lhe Mênon, deixava-o com
suas aporias.
Cremos
que o mito serve para evocar e incentivar certas realidades no homem. Uma vez,
porém, que essas realidades já são parte de sua experiência viva, o mito deixa
de ter o apelo de lembrá-las ao homem. Nesse momento, ele pode querer saber em
que consiste aquela realidade: “Quid est...?” Surge, então, a filosofia. A
definição mesma das realidades aludidas no mito pode também revelar outras
possibilidades que não se percebia antes, desacreditando-o, portanto, em alguma
medida pelo menos. Além de sua função coletiva -- todo mundo já foi criança e
deles precisou --, o mito pode, entretanto, continuar a municiar a imaginação
com possibilidades de compreensão. Os gregos não davam muita bola para seus
deuses, mas não recusavam as histórias morais que os mitos encerravam.
A
filosofia é a técnica de enxergar diversos pontos de vista sobre um tema,
circundando-o trezentos e sessenta graus, notando e vivenciando como suas as
opiniões mais díspares dos sábios e dos agentes, vendo que significados tinham
para eles a ponto de endossá-las, para então procurar enxergar sua raiz comum,
seu centro irradiador, sua unidade; a filosofia é por excelência a busca da
unidade, entre qualidade e quantidade, entre fatos e valores, entre as opiniões
mais aparentemente contraditórias, não uma unidade falsa, artificial, mas a
unidade presente nas premissas inconscientes que emanam destas opiniões; ela é
um trabalho de anamnese, de rastrear as origens dessas opiniões, para ver se
tem, ou se não tem, superfícies de contato, para ver se falam da mesma coisa e,
em sendo assim, se se sustentam ante um horizonte mais amplo de visão, que as qualifica
como certas sob um ponto de vista, relativo sempre, mas verdadeiro.
Morihei
Ueshiba, o fundador do Aikidô, mandaria “contemplar as obras do mundo, ouvir as
palavras dos sábios, e pegar tudo o que fosse bom para si. Tendo isto como
fundamento, abrir as próprias portas para o verdadeiro.” “Não despreze a
verdade que está debaixo de seu nariz”, dirá.
Se a filosofia é uma
técnica, não o é menos o amor.
O
amor e a filosofia chegam mesmo a ser muito parecidos, uma vez que o amor não é
um mero ato de vontade, ele precisa entender o próximo, para amá-lo realmente,
e não apenas declarar seu sentimento.
E o método para isso é
colocar-se em seu lugar, tentar ver as coisas da maneira que ele vê. “O amor
nasce apenas de uma compreensão enérgica dos motivos e sentimentos do vosso
próximo”.
“O amor é o desejo de
fazer bem aos outros”, diz o Livro de Urântia. Mas o amante não pára no desejo,
ele pratica seu amor. O caminho de amar ao próximo pode muito bem ser ajudado
pela técnica de como fazê-lo. E quem melhor que Jesus, o ser humano mais
amoroso que houve, para nos ensinar como amar o próximo?
Antes,
porém, precisamos descobrir o que é o bem.
Bem
é a participação na perfeição divina. Daí que Jesus exorte: “Sede perfeitos
como vosso Pai é perfeito”. A bondade nasce do relacionamento da criatura com o
Pai, e resulta numa apreciação progressiva de valores e sua unificação com a
experiência vivida no dia-a-dia. Ela se relaciona às vivências e escolhas
pessoais de aceitar com sabedoria a luz do Pai. Porque uma pessoa busca a
bondade – o bem refere-se à unidade suprema, lembram-se de Platão? – ela
discerne progressivamente a verdade e a beleza, e então só lhe falta unificar
esses elementos num ideal de serviço divino. “Quem faz o bem a um desses
pequeninos, a mim o faz”. Rosenstock dirá que o “bem não “é”, exceto por
propagação. Não está em nenhum homem, mas se origina apenas entre professor e
aluno, entre pai e filho, entre o Pai maiúsculo e seus filhos, completo.
“Exatamente como as crianças são procriadas, os dons do espírito, a fertilidade
da bondade, o contágio do entusiasmo, a fecundidade do pensamento (...),” são
“processos que emergem para a vida entre pessoas”. (ROSENSTOCK-HUESSY, 2001, p.
26)
Jesus
era bastante amado por seus apóstolos e seguidores, em geral. O amor também tem
a característica de facilitar o amor, como disse Tomás Melendo.
Jesus
era assertivo e até ríspido se preciso, mas sempre deixava o outro escolher. Em
momento algum de seu julgamento, seja ante o sinédrio ou perante Pilatos, ele
fez uso de sua oratória para persuadi-los de que cometiam um erro, mas esteve
pronto, sempre, a falar a algum de seus acusadores que desejasse sinceramente
saber como proceder. Pilatos quase chegou a escutar Jesus, mas, covarde,
vacilou nas horas decisivas.
Jesus
podia chamar a Pedro de Satanás, ou de hipócritas a certos fariseus, ou seja,
ele não era delicado quando sê-lo implicasse fraqueza. Nunca hesitou em ser severo
com os homens, quando a ocasião demandava tal disciplina.[17]
Era firme na devoção de fazer a vontade do Pai.
Como
saber a vontade do Pai, para fazê-la?
Vai
aqui minha experiência pessoal. Guie-se pelo Ajustador do Pensamento, mas nunca
ao preço de criar ansiedade para si. Ele não fala com você -- não como um
colega seu fala -- mas lhe mostra, a cada momento, o que é possível fazer. Na realidade, perguntar-se sobre qual é sua vontade já
significa estar realizando sua vontade[18].
Além
de bom, Jesus procurava ser gracioso, doce e amável. “A bondade torna-se eficaz
apenas quando é atraente.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 171, 7, p. 1874) No capítulo
sobre Natanael, o apóstolo com quem eu mais me pareço, Jesus diz que veio para
que “meus irmãos na carne tenham alegria e vida de maneira mais abundante”.
Sua
ingenuidade absurda -- “Por que me chamam de bom”? -- faria muitos se
perguntarem quem era esse homem tão bom, que nenhuma autoridade do bem
disputava para si, surpreendendo-se de que não soubessem que o Pai é que o era.
“Os últimos serão os primeiros”.
Ele
procurava ser compassivo, mas sem participar de uma autocomiseração, a qual
pode trazer inação. Jesus procurava construir junto com o outro. Costumava
pedir ajuda ao outro como forma de ajudá-lo, acionando o seu altruísmo.[19]
“Esse mesmo Deus que declara não ter necessidade de nos dizer se tem fome, não
tem pudores de mendicar um pouco de água à samaritana. Ele tinha sede... “Mas ao
dizer “dê-me de beber” era o amor da
pobre criatura que o Criador do universo reclamava.” (Lisieux, Oeuvres
completes, pp. 220-221, tradução minha)
Dissemos
acima que Jesus não seria polido em qualquer ocasião. Mas ele era delicado o
bastante para deixar o próximo à vontade, sem manifestar curiosidade para saber
de sua vida; menos ainda constrangê-lo ou coagi-lo-ia de alguma maneira. Jesus
respeitava o coração dos homens: se desejassem algo, ele já o teria percebido
antes que precisassem dizê-lo, se não quisessem servir ao bem, pouco importaria
alardear querê-lo aos quatro ventos. Jesus conhecia o coração dos homens e
respeitava seus desejos, bons ou ruins. Era sua escolha de realizar ou não a
vontade do Pai.
Jesus
fazia o bem “enquanto passava”, sem emprestar muita cerimônia ao que fazia ou
dizia de bom, como algo corriqueiro junto às atividades diárias. Ele sabia do
que o próximo precisava antes mesmo que o dissesse, porque enxergava sua
experiência de vida através de seus próprios olhos.
É assim que se pode
rezar inclusive, não é nem preciso pedir, uma vez que o necessário para si já o
sabe o Pai, e ele nem precisa que nós peçamos para no-lo dar, basta que
queiramos junto com ele. Que agradecemos. Que o critiquemos, que o xinguemos,
se for o caso, mas que nos comuniquemos com ele. É o que ele quer. Pode
xingá-lo.
“O
maior amor que existe é dar a vida por seus amigos”, Jesus disse e chegou a
realizá-lo, por amor a seus inimigos inclusive[20].
Mais
importante que descrever o amor é vivenciá-lo[21],
assim como para o médico é mais importante curar seu paciente do que se ver às
voltas com rótulos diagnósticos.[22]
Cumpre recordar um Whittaker Chambers mais velho, lamentando que seus amigos
Quaker não tenham tido mais compreensão com ele, antes que se tornasse um comunista:
"The
first friend I was J. Barnanrd Walton, a pleasant, business-like Quacker, who
was then, I believe, the head of the Service Committee. I stayed in
Philadelphia several days, meeting other Friends and canvassing the
possibilities of my going to the Soviet Union. A new and enormously
tranquilizng spirit enveloped me. It emanated from those quiet presences whom I
met, from the chaste Quacker rooms with their plain and fine proportions, or
simply from the sound of the plain language, as voices akesd me: "How is
thee, Whittaker Chambers?" The 17th form was still touched with the
sweetness of the Middle Ages. This is my natural home, I thought. I wanted
nothing so much as to remain in it.
Then the
story of my Atheist play reached Friends. There was a horrified reaction. I
received one of those letters, such as only Quackers can write, which, in the
most restrained language, said in effect: "You are outcast."
It was an
invisible turning point in my life. If, at that moment, one Friend had said:
"Sit down with me and tell me, what have you in your heart," this
book need never have been written. (...)
At the time,
I felt only a stinging sense of rejection. I asked myself bitterly: "Where
in Christendom is the Christian?"
Corta meu coração escutar histórias como esta. Como falta caridade a
cristãos apegados à lei que Jesus não aboliu, mas transcendeu
misericordiosamente. Na verdade, o Whittaker Chambers mais velho que escreveu Witness sabia que seus amigos Quakers
morriam de medo de expor suas crenças às perguntas e objeções, embora sinceras,
de um ateu, por isso camuflaram com ortodoxia suas inseguranças e incertezas.
Ele entendeu isto e os perdoou.
Não importa se a pessoa
acredita ou não em Deus nominalmente, desde que acredite na realidade do bem,
no Ajustador do Pensamento, quer saiba disso ou não. E mesmo que esteja
confusa, sobre se acreditar ou não em Deus é bom para ela, desde que esteja
buscando. E, se não estiver, que siga seu caminho e vá com fé. Porque “cada
mortal que, consciente ou inconscientemente, esteja seguindo o guiamento do seu
Ajustador residente, está vivendo de acordo com a vontade de Deus”. (LU, doc.
107) E “quando a mente é dotada, desse modo, pela ministração do Espírito
Santo, ela possui a capacidade para escolher (consciente ou inconscientemente)
a presença espiritual do Pai Universal — o Ajustador do Pensamento”. (LU, doc.
34)
Por
fim, lembrar de ver as motivações do próximo, claro.
“Jesus amou tanto os
homens porque atribuía a eles um valor muito elevado. Vós podeis melhor descobrir
os valores dos vossos companheiros, descobrindo a sua motivação. Se alguém vos
irrita, causando a sensação do ressentimento, deveríeis buscar discernir
compassivamente o seu ponto de vista e as suas razões para uma conduta de tal
modo censurável. Uma vez que tenhais compreendido o vosso semelhante, vos
tornareis tolerantes; e tal tolerância amadurecerá a amizade transformando-a em
amor”. (LU, doc. 100)
[1] Dentro de uma esfera de
variância, claro, além da qual a pessoa não entendeu do que se estava falando,
o que é o que acontece, aliás, quando se quer alegorizá-la sem humildade poética.
Alegorizar o símbolo, caso à parte a poesia às vezes, é colonizar a mente
alheia (e a própria).
A humildade poética sabe ser individualíssimo o
seu entendimento, que existe sob um certo aspecto num determinado momento.
[2] Comentando os seguintes versos
de Vinícius: “Fico ali respirando o cheiro bom do estrume / Entre as vacas e os
bois que me olham sem ciúme” (Soneto de intimidade).
[3] Eles e suas contrapartes no
século XX que negavam absolutamente valor à razão.
[4] Os noditas eram descendentes dos assessores
extraterrestres do príncipe Caligástia.
[5] Conferir MARIANI, 2009
[6] Madura aqui não bastará ser
adulta. Há atores de novelas que interpretavam vilões os quais relatam terem
sido agredidos na rua. Não são só crianças que não sabem diferenciar a ficção
da realidade.
[7] Sobre
o tema dos poetas na República, conferir MOTTA, 2010, pp. 81-92.
[8] Não
se creia que a academia fechada por Justiniano fosse a mesma inaugurada por
Platão. Esta foi destruída em 86 AC, quando Sulla sitiou a cidade de Atenas
durante a primeira guerra mitridática. Filo de Larissa, o último escolarca da
Academia, o equivalente a seu reitor, transferiu-se para Roma, onde deu
palestras assistidas pelo jovem e entusiasmado Cícero.
[9] “As
translationes studiorum são
movimentos históricos e socioculturais de translação de manuscritos,
conhecimentos, filosofia e ciência” (COÊLHO, 2008) de um lugar para outro.
[10] Ver
O'Leary, Chapter V, 5.
[11]
Torcemos com Wilber pela eminência social do domínio transpessoal sobre o
mítico, como ele os entende. É ótimo que os arquétipos tenham uma conotação
mais marcante de sabedoria do que de mero antropomorfismo. Melhor, entretanto,
é quando ambas as conotações podem ser unidas, como na figura do Pai Divino,
que, muito mais do que poderia um mito – novamente conforme a terminologia
wilberiana –, encerra uma realidade em si simbólica, como tal acessível ao
homem em qualquer fase do desenvolvimento de sua personalidade. “Quando tudo
estiver dito e feito”, aqui o gran finale do Livro de Urântia, “a idéia de um
Pai será ainda o conceito humano mais elevado de Deus”. (LIVRO DE URÂNTIA, doc.
196, 3, p. 2097) O homem agradece pela intuição simples carregada de sabedoria
e amor.
Sobre
os significados distintos de arquétipo na filosofia clássica e na psicologia de
Jung, conferir WILBER, 2001, 217-219.
[12]
Mais do que isso:
“O “sentido
mitológico”, um dos fatores da inteligência humana, corresponde a toda uma
dimensão da realidade, a qual, sem
esse sentido, manter-se-á inacessível.” (PALLIS, 2003, tradução de Miguel Conceiçâo)
[13]
Refiro-me a Hamlet, que respirou o ar podre no reino da Dinamarca.
[14]
Conferir livro III, 3, da obra De Anima.
[15]
Porque ele será imaginado, e as “imagens são, em sua maior parte, falsas”.
(ARISTOTLE, On the Soul, Book 3, part 3, tradução minha). Aristóteles só errou
por modéstia, as imagens são, por definição, falsas, no sentido de que são uma
ficção; aquela ficção-real de que nos falou Mário Ferreira dos Santos acima,
isto é, ficção com fundamento maior ou menor no real. Mesmo a imagem de um unicórnio,
só conseguimos construí-la valendo-nos da imagem de entes reais.
[16] Essa falsificação é parte
consciente, parte inconsciente, muito embora a própria pessoa não consiga
admiti-lo, ou mesmo lembrar que em parte a quis. A lembrança da intencionalidade
da falsificação só ocorrerá com a lembrança dos seus motivos. Porque então a
pessoa está justificada ante sua consciência. É preciso uma misericórdia divina
conosco mesmos no processo de descobrir por que agimos como agimos. A
autoimposição de rigores morais excessivos ainda é um disfarce contra o
autoconhecimento. Responsabilidade é
assumir (perante nós mesmos, não necessariamente perante o mundo) o que ocorre
(nem mais nem menos) em virtude de nossa ação.
[17] Ecoa-me Rui Barbosa:
“O Padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas:
“Bem pode haver ira, sem haver pecado: Irascimini, et nolite peccare. E
às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a paciência, e
silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a perseverança dos bons. Qui
cum causa non irascitur, peccat (diz um padre); patientia enim irrationabilis
vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum malos, sed etiam bonos invitat
ad malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a mansidão: porque esta virtude
compreende dois atos: um é reprimir a ira, quando é desordenada; outro,
excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao
senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre faz o seu ofício. E
assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se,
bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o
Filósofo) ad quae oportet, et quibus oportet, irascitur, laudatur, esseque is
mansuetus potest.”
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes,
rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o
específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração
religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas
não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja
contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira
odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é
agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas
indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna.”
(BARBOSA, 1921)
O sentimento de indignação moralista que move o brasileiro contra a
corrupção deve bastante, decerto, a Rui Barbosa – na continuação desse trecho
transcrito da Oração aos moços ele referir-se-á especificamente à corrupção.
Não considero o sentimento ruim, mas quando sobrepuja toda e qualquer discussão
política pode fazer mais mal que bem. Ter
que se indignar a toda hora, o tempo todo, é esquecer-se de reconhecer e
desfrutar o que de bom eventualmente esteja acontecendo, é muito chato, na
realidade.
[18] Encontrei hoje, dia 13/10/2015, a seguinte passagem do
Livro, que corrobora este entendimento: “Se quiserdes realmente encontrar Deus,
esse desejo é em si evidência de que já O encontrastes”. (Doc. 130)
[19] Como o anjo ajuda Bailey no filme ‘Felicidade
não se compra’, à exceção de que Jesus, suponho, não explicaria que estava
querendo ajudar, a pessoa teria que adivinhar por si.
[20] Jesus
não é o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, imolado para pagar
nossos pecados, mas, verdadeiramente, é um salvador.
[21] “Um
homem bom e nobre pode amar de um modo consumado à sua esposa, mas pode ser
totalmente incapaz de passar satisfatoriamente em um exame escrito sobre a
psicologia do amor marital. Outro homem, tendo pouco ou nenhum amor pela sua
esposa, poderia passar nesse exame de um modo bastante aceitável. A imperfeição
do discernimento daquele que ama sobre a verdadeira natureza do ser amado em
nada invalida, seja a realidade, seja a sinceridade do seu amor.” (LIVRO
DE URÂNTIA, doc. 103, 8, p. 1140)
[22] Como
disse Hahnemann: “The physician's high and only mission is to restore
the sick to health, to cure, as it is termed.” (HAHNEMANN) Essa primeira frase de seu Organon
era a exortação ao médico para que não rechaçasse de antemão, sem conhecê-las,
terapias que pudessem curar o paciente, como a da homeopatia, que Hahnemann
apresentava neste estudo.
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