No primeiro artigo, apontei que o centralismo romano está em xeque no Livro de Urântia.
Devido aos conflitos com o Império, a igreja romana interditou várias vezes cidades alemães. A interdição é uma punição que inclui a proibição de realizar a missa. Só que as pessoas não deixavam de ser religiosas da noite para o dia. Se não na missa, elas iriam exercer sua fé de outra maneira. Que na Alemanha a mística medieval fermentasse; que uma religião do coração, fazendo pouco caso dos sacramentos, se desenvolvesse nestas bandas, não deveria ser motivo de tanta surpresa.
Duzentos anos depois a coisa explodiria com Lutero.
E aqui continuamos analisando os dogmas proclamados ex cathedra pelos papas.
Lutero era um polemista que escrevia admiravelmente. Convenhamos, porém, que sua tese de que o livre-arbítrio não existe é constrangedora. Pobre de Erasmo, que se viu rebaixado escrevendo laudas e laudas para defender o livre-arbítrio.
Na bula Exsurge Domine, o Papa condena a tese luterana de que “em toda boa obra o justo peca”. Essa discussão sobre graça divina ou boa obra como requisito para salvação sempre me pareceu bizantina. O Livro de Urântia diz que a fé salva. Basta querer.
Sobre o perdão de Deus, parece que Jesus nem gostava da palavra perdão, que denota uma certo distanciamento entre o Criador e a criatura, um arrependimento solene a ser remido. Não, o ponto é conversar com o Pai, cuja compreensão está sempre disponível; é caso também de perdoar o próximo, que deseje ser perdoado. O perdão de Deus e o perdão ao próximo são faces da mesma moeda.
Na bula Cum Occasione, de 1653, que estabeleceu a ofensiva contra o jansenismo, o Papa está certíssimo em dizer que a graça de Deus pode ser resistida pelo homem, ou seja, o homem pode não querer a salvação dada por Deus.
O ponto é o livre-arbítrio: Salva-se quem quer, não quem pode, porque basta querer. A vontade humana e a graça divina se encontram no meio do caminho.
A constituição Coelestis Pastor condenou teses de Miguel de Molina.
Não é necessário anular a própria vontade em submissão à vontade de Deus, diz o Papa sabiamente. O ponto é querer junto com Deus.
“Da mesma maneira que eles nada deviam pedir a Deus”, diz Miguel de Molinos, “tampouco devem dar graças a Ele”.
Não, o Papa está certo. “O agradecimento é a mãe de todas as virtudes” (Cícero). Rever com agradecimento o que se passou no dia antes de dormir pode ser uma boa maneira de se comunicar com o Deus que habita dentro de nós.
Retomando a falsa dicotomia entre graça e boa obra, a constituição Unigenitus, de 1713, condena a tese de Quesnel de que qualquer bem, inclusive a boa obra, depende da graça divina. Ora, já Platão dizia que a virtude é um dom divino, nós somos bons enquanto participamos da bondade divina.
Sempre evitando qualquer fumaça de luteranismo, a igreja católica resolveu encrencar com isso e entrou numa dialética do erro. Querendo proteger os sacramentos, esqueceu que sua função é ativar a vida interior.
Não consigo ver como o juízo de Quesnal, belamente apresentado aliás, de que “o medo só restringe a mão, mas o coração estará viciado pelo pecado enquanto não se guiar pelo amor à justiça” pode ser considerado herético.